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SAÍDA PARA CASALVASCO, A SUDOESTE DE VILA BELA, NO DIA 2.07.1907

A 2 de julho, resolvendo o Major Felix Fleury retornar imediatamente ao seu acampamento da Caiçara, próximo a São Luiz de Cáceres, para intensificar os serviços de locação, medição, abertura de picada e colocação dos postes e linhas e demais trabalhos de campo e de escritório, o Major Rondon, eu e um soldado que levava nosso cargueiro de cozinha continuamos a viagem para Casalvasco.  De Vila Bela a Casalvasco há, por terra, cerca de 50 quilômetros. Pelo rio Alegre, cerca da metade da distância. Nenhum morador encontramos, nem terra cultivada. Apenas campos, planícies a perder de vista. Nenhum viajante é encontrado nessas paragens, nem tropa, nem cavaleiro, talvez durante o ano todo, estando o caminho já pouco perceptível em alguns lugares, pelo crescimento do capim. É a solidão, o silêncio. Mas essa solidão não é total, esse silêncio não é completo. Por ali existe vida, movimento. Há bulha nessa vegetação rasteira, entre o capim, nos pequenos arbustos, à beira dos filetes d‘água que atravessam a campina. É o pio da perdiz, respondido por outra à distância, é o berro do cervo de enormes galhos que, passando à distância, procura alertar a companheira contra um possível perigo, ante a nossa presença. Muito ao longe, o ronco do bugio que, em grupos, das copadas de altas árvores, a muitos quilômetros de distância, nos envia o eco de sua possante voz, para anunciar, segundo informe do habitante do sertão, próximas chuvas. Os moradores de Casalvasco, ou algum raro viajante vindo da Bolívia, não se serve desse caminho para chegar à cidade de Mato Grosso. Usam o caminho dos rios, vindos de além fronteira, rios esses que, descendo, vão engrossar as águas do Guaporé, acima da cidade; são o Barbados, o rio Verde e o Alegre. No mesmo dia do reinício de nossa marcha, devíamos atravessar o Alegre, o que fizemos ao meio dia, com o auxílio de uma canoa que dois soldados levaram ao local da travessia e onde já nos esperavam. Aproveitamos a parada para o almoço, que nosso soldado trazia quase pronto no cargueiro. Às 2 horas da tarde, os soldados, que ali nos esperavam de canoa, voltaram para a cidade, enquanto continuamos nossa marcha rumo a Casalvasco.
Embora continuássemos em belíssimo campo, o trilho, o caminho a seguir, era péssimo. O capim, por vezes alto, impedia boa trotada de nossas mulas; buracos, pequenos arroios às vezes com atoleiros, verdadeira estrada abandonada, difícil de ser transitada. Todavia, a beleza da paisagem amenizava os inconvenientes da marcha. Esse imenso tapete verde, entrecortado de corixos, ponteados aqui e ali de pequenos grupos de uaruris, que dão seus coquinhos tão apreciados e, mais além, à beira de alguma cabeceira, o majestoso buriti, conhecido no sertão como a rainha das palmeiras. Ao longe, emoldurando a cena, belíssima cordilheira baixa completa esse rico e belo quadro.
Pelas 4 horas da tarde, vimos, em pleno campo, um grande guará, o lobo dos campos. Belo animal, mais alto que qualquer dos nossos cães, pêlo marrom, quase preto na barriga, orelhas redondas, focinho normal, cauda espessa e longa. A nossa matilha de cães, que já o lobrigara, atirou-se contra ele. O animal não fugiu; aceitou a luta, embora em desigualdade de condições. Iria lutar contra 10 cães. Apesar dessa diferença, o animal defendeu-se valentemente. Aproximamo-nos e observamos a batalha, que durou cerca de 20 minutos O bravo lobo foi vencido e morto. Apeei-me para sangrá-lo. Arrastei o animal até a margem do caminho, para que o companheiro, que se atrasara, o visse, quando por ali passasse. A fera teria de ser vencida. O que poderia ter feito, contra 10 cães valentes, habituados a esse gênero de peleja? Habituados, porque a matilha, com outros cães que tínhamos no acampamento, já pelo número, já pela contínua escassez de mantimentos em viagens, nem sempre podendo ser por nós alimentados suficientemente, mantinham o seu próprio trabalho de caçadas pelos matos. Esse fato verificamos várias vezes quando, sem termos notado a ausência dos cães, vinham eles chegando, à tardinha, em pequenos grupos, o corpo sujo, molhado em águas apodrecidas dos brejos, mas a barriga grossa, redonda. Chegavam cansados, estendiam-se pelo chão, aproveitando o resto do sol morno da tarde, para descanso, senão bem merecido, pelo menos necessário. Entre a cansoada, havia um chefe. Tinha de ser assim – se quisermos admitir a organização da sociedade entre os animais. Havia-o sim. Era um grande cão de cor branca, manchada e avermelhada, de nome Leão. Fizera a viagem de Goiás, acompanhando a comitiva do Major Fleury e, quando da retirada desse oficial, de volta ao seu Estado,”Mestre”Leão deixara-se ficar pelo acampamento, que os de lá denominavam de “casa de cachorro”, tal o desconforto. Se, dessas empreitadas venatórias, algum cão voltava de barriga murcha, sinal de que a parte que lhe coubera no festim fôra demasiado modesta, por certo não era o patusco Leão. Por isso, vivia ele sempre robusto e nédio.
Continuamos nossa cavalgada, através da bela campanha de Casalvasco. Moradores dali nos contaram que o local fôra, outrora, fazenda do Governo, com haras e criação de cavalos. Sabiam, também, que por esses caminhos corriam, na época colonial, as pesadas diligências que transportavam as ricas personagens da corte dos Capitães-Generais, de Vila Bela a Casalvasco. Diziam, também, haver, ainda, por essa campanha, remanescentes de rebanhos de cavalos, que vez por outra eram vistos em disparadas correrias, à vista de algum cavaleiro apercebido.

CASALVASCO

Chegamos a Casalvasco, cidade situada a Sudoeste de Vila Bela, às sete horas e meia da noite desse 2 de julho de 1907. A escuridão era completa. Aproximamo-nos da primeira casa, de onde vinham réstias de luz. Cães ladraram. A matilha avançou. Houve um começo de luta entre os cães da casa e os nossos, acalmados com a nossa interferência e a dos moradores. Foi esse pequeno incidente que dispensou o “Óh, de casa!”. Apareceu logo um dos habitantes, com uma lamparina a iluminar a cena, indagando quem chegava e o que queria. O Major nomeou-se, indagando da possibilidade de pernoite na localidade. A um convite desse morador, apeamos e penetramos na casa, onde havia um outro homem, três mulheres e várias crianças – um grupo de pessoas assustadas, pela chegada intempestiva de estranhos, à noite. Os dois homens que ali estavam viriam a ser os nossos guias para o resto da viagem, isto é, até Salinas, ponto extremo da fronteira. A um pedido do Major, acompanharam-nos a uma casa vazia, onde poderíamos nos instalar, tão logo chegasse nosso soldado com o cargueiro. Era uma velha e grande casa de taipa, de grossas paredes, coberta de telhas, porém, sem portas e janelas. Como essa, vimos no dia seguinte mais três, todas em idênticas condições de conservação. O curioso é que a meia dúzia de famílias moradoras de Casalvasco, na época, residiam em pequenas casas de pau-a-pique, quando tinham à sua disposição essas outras casas grandes, de fácil conservação, se habitadas. Moravam eles em casebres, pode-se dizer, sem espaço e sem luz. Perguntada a razão, nos foi dito, pelos mais velhos da pequena povoação de negros, alguns ex-escravos, que as cinco casas ali existentes eram remanescentes das construções da época dos Capitães-Generais, sendo que aquela, onde estávamos, havia sido a residência do último Comandante das armas militares, encarregado da conservação da vila. Estes, ao se retiraram para sempre, haviam proibido expressamente, aos antepassados dos atuais moradores, de ocuparem ou deixarem ocupar ditas casas, sob pena de castigo, por desobediência. Essa ordem vinha sendo religiosamente respeitada de pai para filho, através de gerações, até a época em que ali estivemos. Boas risadas deu o Major, ao ouvir tão singular narrativa. Fez ver a essa gente o erro em que incorriam, por ignorância. Disse-lhes que eles se referiam a homens que haviam existido na antiguidade e que tudo e todos, leis e homens, havia desaparecido; que não existiam mais os portugueses das eras passadas, nem reis, nem monarquias; que tudo isso não passava de recordações perdidas no passado e que, pelo contrário, deviam essas casas ser habitadas, para evitar a sua perda completa.
Casalvasco havia sido a vila de veraneio dos potentados do século XVIII, enviados pelos reis de Portugal, para reger os destinos de nosso país e que ali vinham de férias, passar o período do forte verão, servindo, também, de refúgio, nos surtos de maleita. Do Palácio, apenas vimos algumas paredes ainda de pé. Pelas dimensões das ruínas, podia-se imaginar a imponência dessas construções da época colonial. Com frente para a margem direita do rio Barbados, o Palácio, a igreja e outras construções deviam ter tido belíssima situação. Rio não muito largo, mas com extensa praia de areia branca, devia ter sido notável estação de repouso. A igreja ainda conservava-se de pé, porém, sem portas. Por dentro, toda estragada pelas chuvas que, inundando o piso, transformaram tudo em ruínas. O campanário ainda se encontrava de pé. No sino, estava a data de 1783.
Contaram-nos os moradores de Casalvasco que, alguns anos antes, haviam estado ali, vindos do interior da Bolívia, uns padres, anunciando a intenção de reconstruir a igreja, restaurar seus altares e com várias outras promessas, que chegaram a agradar muito a esses pobres brasileiros, ali confinados. Mui ingenuamente, acreditaram nas lábias daqueles padres, que prometiam escola, educação, para a prosperidade do lugar. De fato, reabriram o templo, celebraram casamentos, batizados, mas, como a povoação era muito pequena, todos esses preparativos duraram apenas alguns dias. Após haverem coletado todo o dinheiro que aquela gente possuía, desapareceram, levando todas as peças de ouro e prata, cálice pesado de ouro, turíbulo, cibório, enfim, todos os vasos litúrgicos, que naquela época deviam ser de ouro puro. Todas essas ricas peças, que os inocentes, os ingênuos moradores de Casalvasco lhes confiaram, desapareceram numa tarde chuvosa, com os ditos padres bolivianos. Seriam verdadeiros padres, ou simples ladrões travestidos? Disseram-nos que o mesmo abuso se deu nas igrejas de Vila-Bela, quando do abandono da cidade. Contava-nos a história do furto das alfaias da igreja uma velha moradora, lamentando haver sua gente sido tão simplória, deixando-se enganar por esses homens malvados, que dali levaram economias amealhadas após anos de paciência. Contando-nos essa triste passagem de sua vida, lágrimas corriam-lhe dos olhos e, ao mesmo tempo em que falava, ocupava-se em remendar uma peça de roupa, enxugando as lágrimas com o vestuário que costurava.
Todos da povoação eram impaludados, amarelos, mas viviam, embora fracos e sub-nutridos. Em reservas alimentícias, nada possuíam, plantando um pouco de mandioca, de que faziam farinha. Do rio, pouco piscoso, conseguiam algum peixe. Não possuíam qualquer dos animais domésticos, tão comuns em toda parte. Alguma caça miúda, uma ou outra vez alguém conseguia encontrar um veado, um caititu ou um pássaro. Bem precária a existência dessa pobre gente. Também nenhum deles possuía cavalo, nem muar para montaria. O Major, olhando para aquelas pobres criaturas negras, anêmicas, mulheres e homens sezonáticos, impaludados e vendo a enorme insuficiência alimentar, o trato da moléstia que impera na região, a malária, com mezinhas preparadas em cachaça, de que faziam uso imoderado, fez-lhes ver o quanto era prejudicial à saúde tal sistema de vida. Pouco trabalhavam, quase não se alimentavam e usavam a cachaça em demasia, eis o motivo de se tornarem presas fáceis da doença. Uma das mulheres, achando injusta a acusação de pouco afeitos ao trabalho, ouvindo as expressões do Major, interveio, dizendo:
-Qual, seu Major, não é isso não! Nós fazemos as nossas roças, comemos o suficiente, mas aqui  a febre é braba! No tempo das águas, não há esse pintado que venha e vá embora sem levar a maldita!
O Major achou graça no que havia dito aquela senhora, mas estávamos no mês de julho, em plena seca.

 

BAÍA GRANDE OU SALINAS, NA FRONTEIRA COM A BOLÍVIA

A visita à Baía Grande, também chamada de Salinas pelo Chefe da Expedição, constava das instruções do Governo e deveria figurar em seu relatório. Baía Grande ou Salinas é uma vasta extensão de água, formando um lago de muitos quilômetros de diâmetro, situado junto à linha demarcatória de nossa fronteira com a República da Bolívia. Suas águas são salgadas e moradores de povoações bolivianas, mesmo de alguma distância, vão ali munir-se de sal, de que fazem comércio. Está distante de Casalvasco cerca de 8 léguas. No dia seguinte, voltaríamos a Vila Bela.
Nossa partida de Casalvasco deu-se às 6 horas da manhã do dia 7 de julho de 1907. Partimos, com bagagem e matilha em um grande batelão, pertencente a um dos moradores, a quem o Major gratificou com trinta mil réis. Às 4 horas da tarde, chegávamos a Vila Bela. Ao chegarmos à cidade, encontramos um novo personagem, de quem já ouvíramos falar, pela sua operosidade, dado a empreendimentos e iniciativas postas em prática, tão logo lembradas. Ao imbicar na praia o batelão, um grupo de pessoas veio receber o Major e cumprimentá-lo. Entre estas, encontrava-se o referido senhor, de meia idade, queimado de sol, de estatura média, tipo do nordestino, homem do trabalho. Era o senhor Balduino Maciel, abastado seringueiro do vale do Guaporé. Tendo tido notícia da vinda do Chefe da Comissão, apressara-se a vir cumprimentá-lo, desejando com ele trocar idéias acerca das possibilidades dessa vasta região, rica e tão pouco conhecida dos governos do país e que, olhada e cuidada com um pouco mais de atenção, poderia vir a ser o celeiro do mundo. O Sr. Balduino era um visionário, rico, fortuna havida no rude trabalho de extração da borracha. Possuía vários seringais, com uma exportação de milhares de arrobas de borracha todos os anos. Empreendedor audaz, tinha correspondentes na Inglaterra e na Bélgica. Despendia grande parte de suas rendas na importação de mercadorias, que colocava em todo o vale do Guaporé. Havia idealizado a instalação de uma via férrea “Decauville”, da qual importara uma locomotiva e alguns vagões abertos, para o transporte de seus produtos, de Vila Bela até a barranca do rio Jauru, onde encontraria a navegação até o mar. Vimos, na cidade, parte desse material, que estava sendo transportado para a barranca do rio Guaporé, lugar onde, mais tarde, na margem direita, seria construída a estação telegráfica de Pontes e Lacerda. Todavia, como uma andorinha só não faz verão, esse audacioso empreendimento não poderia jamais ser tarefa para um só homem. Jamais construiria 300 quilômetros de linha, para uma estrada de ferro de bitola estreita, “Decauville”, em terrenos das piores condições topográficas, em sucessão de serras, baixadas profundas de consistências as mais precárias, cortadas em todo o percurso uma centena de vezes por corixos, veios d´água, rios, enorme extensão de pantanal na orla do rio Jauru. Esse nosso amigo, o Sr. Balduino Maciel, era um visionário. Gigantesco salto para o progresso teria dado o grande Estado central, com esse empreendimento! O aproveitamento e o povoamento daquela riquíssima região, com escoamento de sua produção, teriam trazido facilidades para o necessário desenvolvimento dessa parte da Federação que, com seu milhão e meio de quilômetros quadrados, na época, não tem, até hoje, esse número de habitantes. Balduino Maciel, o laborioso industrial, acreditava ainda, em 1907, no ressurgimento do esplendor da época da colonização! Esse bom brasileiro convidou o Major para um jantar, preparando uma recepção em sua homenagem. Nosso Chefe tentou escusar-se, não desejando comparecer com sua farda cáqui já pouco limpa da viagem. A isso, porém, contrapôs o Sr. Balduino, dizendo que nem ele nem qualquer um da cidade possuía trajes de cerimônia. Forçoso foi atender.
À hora marcada, dirigimo-nos, o Major e eu, para a casa do industrial, onde encontramos o salão cheio de convidados: autoridades, famílias, alguns proprietários de seringais do Guaporé abaixo. Felizmente, toda essa gente encontrava-se vestida com roupa comum. Os homens, de brim e as senhoras, de vestidos de chita. Assim, o nosso constrangimento, por estarmos com roupa de viagem, não teve duração. A casa era uma antiga mansão, de vastas proporções, com salas grandes, tetos altos, de um só pavimento, pois, como era sabido, sendo o Palácio dos Capitães-Generais também edifício térreo, era proibida a construção de casas particulares mais altas que os telhados da residência régia. E aquela era uma das casas construídas pelos portugueses.
Depois das apresentações, em que todas as pessoas quiseram apertar a mão do Major e externar seus agradecimentos pela honrosa visita que fazia ao lugar, passamos à sala de jantar. Desde a entrada do salão, havia eu observado o luxo do mobiliário, tão em desacordo com a pobreza dos trajes dos convidados. Tão modestos estes, quão luxuoso aquele. Na verdade, a mobília era rica e bela, estilo imperial. Sofá e cadeira de espaldar alto, forrados de veludo escarlate, consolos e pequenas mesas com armação dourada e cobertas de pedra mármore. No chão, um grande e custoso tapete. As portas eram, como de costume na época, forradas com papel pintado, com gravuras. Tudo muito rico, muito bonito. Ao passarmos à sala de jantar, minha curiosidade admirativa aumentou. Uma mesa posta, com alto luxo, em demasia mesmo, como se estivéssemos tomando parte de um banquete no salão do Hotel dos Estrangeiros, na Praça José de Alencar, no Rio de Janeiro. A toalha e os guardanapos, de fino linho. A baixela era de fina porcelana, trazendo em todas as peças o monograma B.M, do dono da casa. Os talheres de metal, certamente de prata, traziam a marca inglesa de sua fabricação. Os copos, de 2 tamanhos, de fino cristal, para vinho e licor.
O Major desejava conhecer a família do Sr. Balduino. Este teria esquecido de fazer sua apresentação e talvez as senhoras da família estivessem ocupadas no interior, em preparativos do banquete. Interpelou, em dado momento, nosso anfitrião e soubemos, decepcionados, que, não havendo sido prevenido com bastante antecedência, da visita do Chefe da Comissão, viera só ele, apressadamente, deixando a família na fazenda. O cardápio, além dos clássicos pratos próprios da ocasião, frangos, leitão etc, apresentava diversas iguarias em conservas, das mais raras e exóticas. Meu Chefe estava sentado, a instâncias do dono da casa, à cabeceira da mesa, sentando-se à sua esquerda o Sr. Balduino e, à direita, eu. A meu lado, sentou-se a esposa de um dos comensais. Desejando ouvir a opinião dessa senhora sobre a magnificência da casa, com sua rica mobília e a riqueza da mesa, interpelei-a a respeito. A senhora, sem demonstrar admiração, respondeu-me, simplesmente:
-O senhor Balduino é muito rico!
Não achando maneira de continuar no mesmo tom, mudei de assunto.
Que tipo de homem seria esse senhor Balduino Maciel? Como se compreende que um homem de trabalho, um caboclo, criado no rude trabalho de extração de seringa, pudesse apresentar tão extraordinário requinte de elegância e alta fidalguia?  Um mundo de conjecturas povoou-me a mente. Afinal, a explicação seria das mais simples: um industrial inteligente, ganhando muito dinheiro, com correspondentes em Londres, que lhe enviavam ofertas para venda de mercadorias, sempre aceitas, em artigos de primeira qualidade.  Daí, esse luxo.
O jantar chegava ao fim. As conversações entre os convidados generalizavam-se. Ria-se alto. Alguns já pediam discurso. Essa espontânea alegria era em meio à profusão de garrafas de finíssimos vinhos, com rótulos ingleses. O professor da escola local, Sr. João da Silva, levantou-se para saudar o Major, em nome do dono da casa, agradecendo-lhe a visita à cidade. Falando em nome dos habitantes do lugar, agradecia ao Governo da República a instalação do telégrafo nacional nesse limite de fronteira, cuja construção já estava em andamento. O Major, em singelas e agradáveis palavras, agradeceu, por si e pelo Governo, ao qual iria transmitir os agradecimentos da população da cidade de Mato Grosso. Em seguida, desejoso de retirar-se para o descanso, pois pretendia viajar na manhã seguinte, muito cedo, procurou despedir-se. O Sr. Balduino, porém, pediu-lhe mais uns momentos, porque desejava mostrar, em outra ala da casa, um depósito de mercadorias há pouco chegadas da Europa. Por um longo corredor, levou-nos a entrar em diversas salas, repletas de mercadorias, as mais variadas, desde papelaria e livraria, até chapéus, capas de borracha para uso em cidade, guarda-chuvas, botas e uma infinidade de outros artigos perfeitamente inservíveis, desnecessários para os habitantes dessa longínqua e desolada localidade que, durante um decênio, na época da guerra do Paraguai, esteve isolada do resto do país.
Por descuido ou receio, deixaram desaparecer a única estrada que ligava Cáceres à fronteira com a República vizinha, ficando aquela mísera região, com seus poucos habitantes, sem mais notícias da mãe pátria. Os bolivianos aproveitaram-se dessa circunstância, para tentarem apoderar-se de Vila Bela, sendo, todavia, frustrados em seu intento, pela energia de seus moradores. Passado o período da guerra, o Governo central ordenou a reabertura da estrada e construção de nova ponte na passagem do Guaporé, a 72 quilômetros de Vila Bela, que, entretanto, não foi feita. Somente em 1907, foi construída excelente ponte, pela Comissão. O Sr. Balduino insistiu para que o Major e eu aceitássemos um objeto, dos milhares ali existentes, mas nada havia de que necessitássemos. Capa, guarda-chuva, roupa, nada absolutamente nos podia ser útil. Agradecemos.

O MAJOR RONDON E O FOTÓGRAFO LEDUC REGRESSAM DE VILA BELA, DIA  8.07.1907,
(SEÇÃO DE EXPLORAÇÃO E RECONHECIMENTO)


Nossa partida, no dia seguinte, dia 8, da cidade de Mato Grosso para São Luiz de Cáceres,  só pôde ter lugar após o almoço. Eram 2 horas da tarde, quando montamos a cavalo. Os principais do lugar vieram cumprimentar o Major, confiantes e esperançosos da breve chegada dos postes telegráficos à cidade, havendo já determinado o Chefe que a estação provisória seria instalada no prédio do antigo Palácio dos Capitães-Generais. Ao último adeus, veio, pessoalmente, o Sr. Balduino Maciel, apressado, trazendo uma farta matula de frango, biscoitos e bolo. O Major, como de costume, dispensou o favor, dizendo que 12 léguas nós as faríamos, folgadamente, sem comer. Como insistisse para que o sapicuá fosse aceito, fiz sinal para que o doador se aproximasse e amarrasse na garupa de minha montaria o precioso presente, para as horas de fome em lugares completamente desprovidos de qualquer recurso, por esse longo caminhar, até a passagem do Guaporé, onde nossa tropinha, que havia saído ao clarear do dia, deveria nos esperar, para o pouso. A passagem nesse ponto do rio era feita, até então, dentro d´água. Logo, começaria a construção da nova ponte. A denominação de Pontes e Lacerda fora dada ao lugar, nessa época, pelo Chefe da Comissão. O Major Felix Fleury, que havia voltado para Cáceres, levara a metade de nossa tropinha, tendo ficado para nos acompanhar o fiel e antigo servidor nos serviços particulares do Chefe, o valente sertanista João de Deus, mais tarde promovido a Inspetor de 3ª Classe.
Nossos relógios marcavam 2 horas, do dia 8 de julho, quando partimos. As montadas eram de trote avantajado, mas não contávamos chegar à passagem do rio Guaporé, antes das 11 ou 12 horas da noite. A noite fôra, particularmente, escura. O céu, sem nuvens, pouco estrelado. Da nossa matilha, que havia seguido pela manhã com os camaradas, apenas um cão tinha ficado para nos acompanhar, um grande cão mestiço a Terra Nova, todo preto, de nome Africano. Mais tarde, voltando o apetite, o Major, esquecido de que havia recusado a matula oferecida pelo Sr. Balduino, sem que, entretanto, lhe houvesse passado despercebido o gesto do ofertante, colocando na garupa de minha mula o sapicuá, disse-me ser interessante verificar o que continha dito sapicuá.  Abri-o, encontrando frango em farofa, biscoitos de queijo, bolachas e meio queijo do reino. Sim, valeria a pena aproveitarmos, no momento, tão proveitosas provisões, pois que o pouso ainda estaria longe.
Era meia noite, quando chegamos ao rancho onde nos esperavam João de Deus e seus companheiros, com o jantar e as acomodações, para ali passarmos a noite. Tudo pronto, tudo em ordem.
A viagem de volta, a partir daí, foi mais demorada. Queria o Chefe visitar todos os acampamentos e postos de serviço, bem como os trabalhos de construção da picada mestra, que seria de 40 metros de largura, o suficiente para evitar que a linha, instalada ao centro, fosse destruída com a caída das árvores, devendo ser previamente cortadas as altas árvores que estivessem à margem da picada. Todos esses serviços eram diretamente fiscalizados pelo Major.
Teria, ainda, de tratar com seus auxiliares imediatos sobre diversos problemas concernentes a trabalhos futuros.


No alto, à direita, Rondon  observando a abertura da estrada

 

CHEGADA DE VILA BELA A SÃO LUIZ DE CÁCERES, DIA 15.07.1907

Assim, nossa chegada a S. Luiz de Cáceres somente foi possível a 15 do mês (julho de 1907). Para esses detalhes de nova organização e novos rumos, uma parada de semana. O Chefe trazia novos planos. Criar uma nova Seção, com o nome de Seção de Exploração, sob a direção do próprio Major Rondon, na qual eu estava incluído. Em Cáceres, aproveitei essa semana para pôr em dia os trabalhos fotográficos. Os de cinematografia ainda não haviam sido começados, o que se daria na segunda viagem à cidade de Mato Grosso.
Nessa ocasião, julho de 1907, chegava do Rio um novo auxiliar, o Segundo Tenente de Engenharia, João Salustiano Lyra.  Acabava de sair da Escola da Praia Vermelha, após um curso dos mais brilhantes de engenharia militar, no período de uma década. Aspirava, há algum tempo, quando soube da criação dos serviços de estabelecimento das linhas telegráficas sertão adentro, dedicar seu saber, sua inteligência e as forças de que se sentia possuidor, ao serviço da Pátria. Esse oficial, no seu intenso desejo de cooperar em trabalhos de grande valor para o constante engrandecimento do Brasil, ao despedir-se do Comandante da Escola, na época o General Trompowski, recusou o oferecimento honroso que por seu chefe era feito, de reger uma cadeira no curso de Astronomia da Escola. O Diretor, embora pesaroso por ver partir tão aproveitável elemento para o ensino, cedeu, diante do desejo formulado por João Salustiano Lyra, de aperfeiçoar no campo os ensinamentos recebidos nos bancos escolares. Teria o Diretor acrescentado esta frase, que definia perfeitamente o valor desse estudioso, que se retirava: “Esse rapaz, nestes 10 últimos anos, foi a maior cabeça pensante da Escola”. Logo ao chegar ao serviço da Comissão, o segundo-tenente João Salustiano Lyra foi designado para servir na Turma de Exploração. Seria o imediato do Chefe, de quem se tornaria o mais chegado companheiro e amigo, durante os 3 anos em que, sempre juntos, palmilharam alguns milhares de quilômetros, dos imensos chapadões dos Parecis, até que a fatalidade o surpreendeu, em 1910, no levantamento do rio Sepotuba. Na travessia de uma corredeira, a água, entrando na pequena e frágil canoa, afundou-a, levando para as ondas revoltas os dois componentes, o Tenente Lyra e o seu companheiro de trabalho. Bons nadadores, ambos, nunca se teve uma explicação de como se teria passado a dolorosa cena que tirou a vida moça a esses dois abnegados rapazes, arrebatados bruscamente do aconchego de suas famílias, dedicados auxiliares da Comissão e servidores da Pátria, que sempre chorou a perda de filhos amados. O Tenente Lyra passara a ser ligado, pelos laços matrimoniais, à família do Sr. José Dulce, chefe da firma fornecedora da Comissão.
A novel turma, com a designação de Turma de Exploração, na qual acabava de ingressar o Tenente João Salustiano Lyra, preciosíssimo elemento, que viria a ser, como auxiliar imediato do Major Rondon, o seu braço direito, compunha-se de 20 homens: o Chefe, Major Rondon, o seu imediato, Tenente Lyra, o autor destas linhas, o civil Benedito Canavarros, que era prático em farmácia, alguns soldados e camaradas de tropa.

 

PARTIDA DA CIDADE DE CÁCERES, A 23 DE JULHO DE 1907
(SEÇÃO DE EXPLORAÇÃO E RECONHECIMENTO)
(O MAJOR RONDON INCUMBE-ME DO SERVIÇO DE INTENDÊNCIA DESSA SEÇÃO)

A 23 do mês de julho de 1907, estávamos, os 20 homens, prontos para a nova jornada. O encarregado da tropa recebeu ordem para estar com os animais de sela e os de cangalha prontos, ajaezados e encangalhados, no dia seguinte, antes de clarear o dia. O soldado cozinheiro também foi avisado para servir café ao pessoal uma hora antes do amanhecer, devendo, desde a véspera, preparar seus cargueiros de cozinha.  Ficariam a meu cargo, além dos serviços fotográficos, todos os serviços de intendência e a fiscalização dos alimentos em geral, pessoal, milho para os animais e, não esquecendo a nossa matilha, alimentação para 12 cães. Essa matilha sempre nos acompanhou, desde o início de nossa primeira viagem. Para esta segunda etapa, alguns cães foram substituídos, por estarem cansados e estropiados das longas caminhadas anteriores. Haveria necessidade de um prévio treino, antes da entrada no sertão, para que esses animais se tornassem aptos a suportar não só as grandes caminhadas, mas também suas particulares correrias atrás de caça, pois nem sempre a cozinha do acampamento lhes dava o suficiente sustento.

O PANTANAL

De São Luiz de Cáceres à Capital do Estado de Mato Grosso, Cuiabá, a distância é de 50 léguas, na época percorridas a cavalo, único meio de locomoção então existente. Ao sair da cidade de Cáceres, pelo bairro do Lavapés, passava-se, após 10 quilômetros de marcha, pelo aglomerado de nome Falcão. Continuando, vinham as fazendas do Sapezal, Morrinho e o antigo estabelecimento da Jacobina. Adiante 3 léguas, a fazenda do Taquaral. Ali, começam a surgir os grandes pantanais, que atravessamos em sua enorme extensão, denominados Boqueirão,Várzea Comprida e outros. Após 25 léguas, atingimos a mui antiga cidade de Poconé, centro das grandes fazendas de criação de gado vacum e cavalar. Nesse tempo, o fazendeiro daquelas paragens não cogitava da importação de raças selecionadas.  No entanto, essa falta pouco se fazia sentir, porque o capim nativo do pantanal, o melhor pasto do mundo é, todos os anos, renovado pelo efeito da inundação, durante 3 meses, pelo transbordamento dos rios, transformando essa vastidão de planície, a perder de vista, em um grande mar interior, que desaparece tão logo se dá a vazante dos rios, na época da estiagem, quando suas águas voltam ao nível normal. Ficando novamente seco o terreno do pantanal, agora, com suas propriedades minerais enriquecidas por toda espécie de detritos que se encontravam em suspensão na água, inclusive a matéria orgânica de milhares de peixes e outros animais aquáticos, brota a pastagem forte e viçosa. É esse o motivo que torna famoso o cavalo criado no pantanal, onde vimos rebanhos de éguas de uma viçosidade e de uma perfeição de formas, que nos pareciam quadros a óleo de exímio mestre da arte pictórica.

 

POCONÉ


Poconé era, na época, uma singela e pequena cidade do interior. Suas casas, na maioria, pertenciam a fazendeiros das redondezas, que ali vinham com suas famílias passar alguns meses de descanso, na época do ano em que cessava ou diminuía o serviço de campo ou, como se diria hoje, passar as férias. Era, assim, um pretexto para encontros e reuniões das famílias que, em tempo do intenso serviço de gado no interior das fazendas, não têm tempo nem ocasião para visitas. Coincidia, também, com os meses de estiagem e das festas religiosas, principalmente com a maior do ano, a Festa do Espírito Santo, no mês de maio, de grande repercussão, dentro e fora do Estado. Cada ano, essa festa era dirigida por um dos fazendeiros do local, eleito o rei das festividades. Embora o triunfo nessa eleição trouxesse grande soma de encargos e enorme despesa, era sempre recebido com prazer, em parte porque o anfitrião sentia-se honrado com o mandato e, em parte, porque ficava sempre na esperança de ressarcir grande parte do dinheiro despendido. Nos últimos 3 dias da festa, tinha o direito de mandar bandos de pessoal pelas ruas da cidade e adjacências, recolher esmolas, sempre fartas, no final, tendo, além disso, direito a um grande leilão de prendas na última noite da festa. Somando toda a receita, o rei, às vezes, conseguia recuperar, senão toda, pelo menos grande parte da despesa efetuada, que ia de 5 a 10 contos de réis, quantia bastante elevada para a época. O rei estava na obrigação de dar de comer e beber, durante a semana dos festejos, a todos que quisessem comparecer e a dar os bailes, que se repetiam do primeiro ao último dia. Havia uma rainha para auxiliar o rei, que pertencia à sua família ou era esposa de outro fazendeiro. As touradas e as cavalhadas vinham como continuação aos festejos. Havia, ainda, antes da aproximação da época das chuvas, a festa de São Benedito, quase semelhante à anterior, sendo, porém, as festividades, em menores proporções. Nestas, o rei não tinha direito às esmolas, não podendo dirigi-las quem não quisesse o encargo ou não pudesse gastar muito dinheiro com os festejos, para divertir a todos quantos comparecessem, amigos ou simpatizantes. Mas, não costumava ser eleito um rei que não satisfizesse as condições ideais. A eleição parecia presidida sempre por alguma boa fada, que tinha o cuidado de designar um dos fazendeiros mais ricos e capazes.
Poconé encontra-se em plena região dos pantanais. Os rios Paraguai, São Lourenço, Cuiabá, Sepotuba e vários outros menores, transbordando na chamada época das enchentes, formam a grande extensão coberta de água. Por efeito das grandes e insistentes chuvas, de outubro a março de cada ano, quando os rios têm suas águas em contínua elevação, dá-se o extravazamento, por ambas as margens, iniciando-se a inundação de léguas e léguas de terras baixas, em todas as direções, a perder de vista, onde o viajante, admirado, pensa estar vendo algum mar interior ou uma grande lagoa. Em abril, cessam as chuvas, que só voltarão em setembro, iniciando-se a seca. A natureza começa a apresentar panoramas completamente diferentes. As águas retiram-se, a vegetação verdejante recobre toda aquela vastidão, trazendo à terra novos e maravilhosos cenários. Agora, é o solo que surge com estranha pujança, com suas múltiplas espécies de gramíneas viçosas, formando grandes tapetes verdes, onde desabrocham as mimosas flores campestres. Mas, se o espetáculo era belo quando o viram os viajantes que por ali passaram apenas um mês atrás, muito mais belo é agora, com as águas em retirada, deixando uma infinita quantidade de peixes presos no terreno já semi-seco, sendo para ali atraídos milhares de pássaros, de todas as espécies, de aspectos e tamanhos os mais variados, desde o pequeno Martim-pescador, até as pernaltas, a imponente garça, o colhereiro de plumagem rósea que, em grandes bandos, elevando-se do solo e voando contra o sol, parecem desenrolar imensa cortina cor de rosa. Outras aves há que, igualmente, ao levantarem vôo, em enormes bandos, apresentam o mesmo espetáculo, em nuanças diferentes. Esses pássaros, em quantidade infinita, forram o chão, numa extensão de vários quilômetros quadrados, vindos de longe, como que orientados por fada protetora, em tão grande quantidade, para a festança que a natureza, mãe carinhosa, oferece todos os anos nessa estação, aos hóspedes desse imenso aviário.
Atravessamos grande parte desse pantanal. À medida que avançávamos, nossas montarias assustavam a passarada, que se erguia aos ares, em compactas revoadas, voltando em seguida à farta messe, no afã de não perder a sua parte. O regalo deverá durar mais de um mês depois da baixa das águas, porque a quantidade de peixes que ficam presos nos corixos e nas pequenas concavidades do terreno é muito grande, imensa. Ainda nessa oportunidade, á tarde, viajando no pantanal, vimos grande poleiro de garças, numa fileira de grandes árvores copadas, às margens de uma cabeceira. Visto a distância, tem-se a impressão de que se trata de faixa branca, muito extensa, como se fôra enorme lençol estendido, secando ao sol. Garça, belíssima, a rainha do pantanal! Informou-nos o guia que existem desses poleiros naturais, alguns com a extensão de cerca de um quilômetro, onde milhares de garças vão pousar. A fazenda, onde o Chefe deliberara pernoitar, encontrava-se à pequena distância. O guia foi-me contando que os moradores dessa região costumam fazer a colheita das penas dessas aves na época apropriada, indo vendê-las na Capital do Estado, a peso e por bom dinheiro. Essa colheita não é operação difícil e é feita na chamada época da muda. As garças, no poleiro, durante a noite, sacodem as asas, caindo as penas velhas, para a vinda das novas. Os que se interessam por esse gênero de caçada, iniciam o serviço com o clarear do dia. Esclareceu nosso acompanhante que assim faziam, por dois motivos: primeiro, porque cada qual queria chegar na frente, para conseguir melhor colheita; segundo, porque, como o poleiro é quase sempre situado por cima de um corixo ou mesmo do pântano, a pena, caindo e não sendo logo apanhada, enterra-se na água suja ou na lama, não podendo ser aproveitada. Deve também o apanhador de penas ter cuidado com a sua segurança no local, pois não raro encontra de tocaia uma onça parda, uma jaguatirica ou outra pequena fera, que ali espreita a possibilidade de apanhar alguma garça descuidada, que desça o suficiente para ser alcançada, de salto. Às vezes, esses colhedores de penas vendem o produto de suas colheitas aos fazendeiros e, outras vezes, esperam a oportunidade de uma viagem à cidade, onde as trocam por mercadorias nas lojas de varejo. O fazendeiro, a quem iríamos nesse dia pedir hospitalidade, era um dos compradores de penas e, segundo nosso guia, pagava o preço de cem mil réis o quilo. Tive desejo de assistir a uma caçada desse gênero, embora soubesse que isso só seria possível bem mais tarde.


CUIABÁ, ENTRADA EM DIREÇÃO NORTE – DIA 2.08.1907

A 2 de agosto de 1907, chegávamos a Cuiabá, a Capital do Estado de Mato Grosso, a Cidade Verde, numa expressão carinhosa de um de seus mais ilustres e estimados filhos, S. Exª. o Arcebispo D. Aquino Corrêa. A Capital do grande Estado central era, no início do século XX, uma cidade com cerca de 22 mil habitantes. Sua fundação data de 1º de janeiro de 1727, como pequena vila, na administração do Governador e Capitão-General, D. Rodrigo César de Menezes, sob o nome de Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuyabá. Foi elevada à categoria de cidade em 1818 e declarada oficialmente Capital do Estado, em 28 de agosto de 1835, já contando com 6 mil habitantes (Hercules Florence). Latitude 15 ° 36' Sul e longitude 12 º 59' a Oeste do Rio de Janeiro. Ocupava uma área entre 3 quilômetros de comprimento, de NE a SO e 2 de largura. Todas as casas possuíam terreno plantado de altas árvores frutíferas, o que fazia com que, numa vista panorâmica, em 1900, a cidade desaparecesse, envolta na vegetação.
Consta, ainda, segundo a história, que o povoado teve origem em 1722, sendo o seu primeiro morador o bandeirante Miguel Sutil que, em demanda dos sertões ao extremo Norte do Brasil, encontrou ali ouro em pepitas, em tão grande quantidade, à flor da terra, que resolveu quedar-se no local, com os componentes de sua bandeira, não mais prosseguindo em suas excursões.


CUIABÁ, A CIDADE VERDE

A cidade de Cuiabá, Capital de um dos maiores Estados da Federação, na época com 1.500.000 km quadrados, não possuía, em 1907, cem mil habitantes. Encontra-se a 150 metros acima da superfície do mar, estendendo-se num planalto de 100 km. Até os contrafortes da chamada Serra da Chapada, galgando-a, aí, em vários degraus, alcançando, com alguns lances bastante íngremes, o alto do platô, na Serra do Mar que, entre 700 e 800 metros, em rumo NO/ N, termina na Serra dos Parecis, no ponto demarcado pela Comissão Rondon, ao que foi dado o nome de Comemoração Floriano onde, pouco além, penetrando em espessas matas virgens, perde-se nas precipitações dos terrenos do divisor de águas, ali descambando velozmente para a região Amazônica.


 

A cidade era dividida em duas partes: o Centro e o Porto, esta última parte situada junto ao rio Cuiabá e onde se via algum movimento de chegada e partida de embarcações, fazendo o serviço de transporte de passageiros e cargas entre Corumbá e Cuiabá, em viagem de 8 ou 9 dias de subida, a partir de Corumbá e de 3 ou 4 dias de descida, a partir de Cuiabá. Em época de seca, com baixios em quase todo o percurso da viagem, essas lanchas chegavam a gastar até 15 dias de subida.
Na cidade de Cuiabá, cinco são as Igrejas existentes, todas antigas, em estilo e conservação. Suas ruas estreitas, menos a extensa rua que, do centro, vai à Freguesia do Porto, onde se via a Igreja de São Gonçalo, grande templo onde, como nas 4 outras igrejas da cidade, os ofícios religiosos não eram diários, isso por falta de padres em número suficiente. A congregação Salesiana mantinha, na área central, um grande Colégio, com a denominação de Colégio Dom Bosco, sob a proteção de Nossa Senhora da Conceição. Na época em que se referem estes relatos, Cuiabá continuava com suas casas baixas, muitas delas ainda construídas de adobes, sendo que uma delas ainda era construção muito antiga, ainda pelo sistema de taipa, com o pavimento térreo e um primeiro andar, a qual serviu, por muito tempo, de instalação para o Tribunal da Relação e Repartição de Polícia e foi demolida depois do ano de 1945.
Em Cuiabá, após pequeno descanso, alguns trabalhos de escritório, serviço de recebimento e remessas postais e telegráficas do Chefe da Comissão, seguimos, na semana seguinte, para o acampamento da segunda Seção, chefiada pelo Capitão de Engenheiros, Marciano Ávila, localizado na povoação de Brotas, distante nove léguas da Capital. Nesse acampamento, o Major Rondon se ocupou da organização dos planos de trabalho para a continuação do serviço, sertão adentro. Com 10 dias de permanência nesse local, a Seção conseguiu notável avanço, indo localizar-se a cerca de 20 léguas, do ponto inicial.

A primeira vila, rumo a Diamantino, é Guia, a partir de Cuiabá, de onde dista 30 quilômetros. Na ocasião, era uma região desolada, que possuía menos de 100 casas. Na época da seca, o chão de terra branca, pedregoso, vegetação raquítica, terra de aluvião que, em épocas passadas, no período da mineração, foi toda revolvida, quando a busca do ouro ocupava as energias e a mente dos homens aventureiros, vindos de distantes terras.

                   
ROSÁRIO OESTE


No dia 25 de agosto, chegávamos a Rosário Oeste, pequena localidade distante 30 léguas da Capital, que formava, com Diamantino, o centro dos negócios, em grande escala, da borracha. O comércio dessas localidades ocupava-se, quase que exclusivamente, desse ramo de negócio. Eram os compradores de borracha e os donos dos seringais, que ali exerciam suas atividades.
Vale a pena, ainda que brevemente, descrever esse curioso comércio e seus excêntricos exploradores. Os seringais ocupavam áreas de milhares de quilômetros quadrados, desde o declive dos  chapadões dos Parecis, até as margens planas dos grandes rios, tributários do Madeira, do Mamoré e de outros. Por volta do ano de 1912, os preços da seringa (Haevea Brasiliensis) haviam atingido uma alta astronômica e por esse motivo o seringueiro era regiamente pago. Em geral, aventureiros, vindos de todas as partes do país, ali aportavam, atraídos pelas notícias de fartura e dinheiro ganho com facilidade. No entanto, a vida do seringueiro devia ser a menos desejada. Expunha-se a todos e inimagináveis perigos. Isolado, durante mais de meio ano, na área a ele determinada para a colheita, fica completamente só. Nunca leva a família, que fica “lá fora”, em Rosário Oeste ou Diamantino, porque não pode expor os seus aos azares de região tão perigosa. Lá está o seringueiro, sem casa, apenas dormindo em pequeníssimo rancho, ao qual só se recolhe à noite, para dormir. Cozinhando em pequena panela de ferro o seu feijão com chimango, ali passa de abril a novembro ou dezembro, quando, dada por terminada sua tarefa, a tropa do fornecedor vai buscar as suas “balas” de borracha. Estas, conforme a capacidade de produção do seringueiro, pesam de 150 a 200 arrobas, dando-lhe um haver apreciável, ao preço médio de 60 mil réis a arroba. Mas, como não sabe guardar dinheiro, nem economizar, mais da metade lhe fôra adiantada pelo patrão, importância essa gasta antes de sua entrada no sertão. A outra parte foi consumida pela família, a quem o patrão forneceu de tudo o que necessitava. Não obstante, sabe que ainda encontrará o suficiente para festejar junto aos seus, quando estiver novamente no “comércio”. Durante esse longo tempo em que se encontrou só, na sua trilha de seringueiras, saiu triunfante, porque nada lhe aconteceu, embora rodeado de inúmeros perigos. Essas regiões são infestadas do gentio, eterno inimigo do seringueiro, que não o deixa escapar, se o encontra na mira de sua Winchester 44, de 12 balas. Vez por outra, o índio lhe teria subtraído a panelinha com o feijão meio cozido. De nada adiantará procurar o ladrão, pois não o encontrará, sendo, mesmo, perigoso encontrá-lo. Assim sendo, o amigo seringueiro, adotando a velha filosofia, na falta de sua panelinha de ferro, a lata vazia de banha, de 2 quilos, lhe servirá de panela. Agora, não mais a deixará no ranchinho, levando-a consigo, ao local de trabalho e, ao pé de uma seringueira, fará um foguinho para acompanhar, com cuidado, o cozimento de sua refeição. Além do perigo de uma agressão por parte do caboclo que, embora invisível dentro da mata, não o perde de vista, a espreitar-lhe os movimentos, há ainda o perigo de ser atacado por onça ou outra fera.  É verdade que é raro o seringueiro que está desacompanhado de um cachorro que, à noite, deitado na cinza, junto à rede do seu amo, também está atento a qualquer perigo, pois o animal, por instinto, sabe que ele e o seu dono, ali, nunca estão em completa segurança. Sua audição e seu olfato, aliados a seu prodigioso instinto natural, dão-lhe imediatamente noção de qualquer perigo iminente. Além desses perigos, há também o oferecido pelos répteis, em sua caminhada diária através do mato cheio de vegetação rasteira. Poderá pisar inadvertidamente em uma cobra. O sertanejo traz sempre consigo um antídoto para veneno de cobra. Mas, se conseguir resistir, poderá ficar longo tempo impedido de continuar o seu trabalho. Por fim, há ainda a terrível maleita, embora não seja moléstia que ataque o homem no período habitual da safra da borracha. Pode ele ser atingido pelo mosquito transmissor da doença, que vive em algum terreno úmido, no mais profundo das matas, onde grossa camada de folhas apodrecidas, apesar de muitos meses de seca, continua úmida, constituindo um ambiente propício ao desenvolvimento dos enxames desse mosquito. Todos esses obstáculos vencidos, poderá o seringueiro voltar para junto da família, feliz e cheio de esperança.
Em 1907 existia, em Diamantino, umas 6 ou 9 casas que giravam com grandes capitais, empregados em extensos e produtivos seringais. Destacavam-se, entre as mesmas, as firmas Orlando & Irmão, Dorsa & Cia., Dario Moura & Cia. e outras. No começo de cada ano, chegavam àquela cidade e a Rosário Oeste levas de interessados em obter emprego na extração da borracha. Essas empresas, sempre necessitadas de trabalhadores, aceitavam-nos, movidas pela força da concorrência, oferecendo-lhes grandes somas de dinheiro e mercadorias. Obviamente, o desconhecido, vindo de longe, deveria trazer recomendação de pessoa que lhe serviria de fiadora. Assim, conforme a capacidade de produção do trabalhador, podia dispor de adiantamento em dinheiro, para mais de 5 contos de réis e de farto suprimento em artigos e mercadorias, da firma que o contratava.
A entrada nos seringais só se dava em princípios de abril, época em que as chuvas cessam. Até essa ocasião, o já contratado por essa ou aquela casa ficava em descanso ou passeios, começando por gastar o dinheiro recebido em adiantamento. Seu primeiro cuidado era comprar roupas em quantidade para sua família. Comprava logo seu bom revolver “Schmidt and Wesson” ou “Colt”, um ponche de borracha, um chapéu, botas de montaria, faca com bainha de prata, sem esquecer a “Winchester” de 12 tiros, calibre 44, com várias caixas de balas. Feitas essas compras, havia ainda grande sobra de dinheiro e de crédito no armazém da firma. Comprava, em seguida, comedorias em grande escala, sortindo e superlotando a despensa da casa, com latarias, de que havia grandes estoques no comércio, bebidas e enlatados, conhecidos e desconhecidos. Nesse terreno, tudo devia servir, sendo para o homem do sertão indiferentes as qualidades ou marcas, superiores ou inferiores. Todavia, merece uma alusão à incrível diferença dos preços desses artigos, comparados com os de hoje. No começo do século, na cidade de Cuiabá, o autor destas linhas tinha constantemente à sua mesa um vinho verde português, em botijas de um litro, comprado em caixa de dúzia, ao preço de 24 mil réis a caixa, na Casa Gabriel de Matos, à rua 13 de Julho. O vinho do Porto Adriano Ramos Pinto custava a irrisória quantia de 3 mil réis. Qual hoje o seu preço?
O nosso seringueiro, depois de todas essas compras, está com suas necessidades atendidas, pronto, equipado, fornecido de tudo quanto desejava, podendo, logo que necessário, dirigir-se para o seringal onde ficará lotado. Mas, como ele chegou com um mês de antecedência, deverá esperar com os companheiros a época certa. Irão em grupos, a pé. A distância a caminhar será de 20 a 40 léguas. Não lhe faltaria dinheiro para comprar um cavalo, mas, na sua “estrada” estará só, isolado, não podendo cuidar do animal, que certamente se perderia no sertão, ou seria furtado pelo índio. Pelo que constatamos pessoalmente, o índio é grande apreciador da carne desses animais, para o seu moqueio, desprezando a carne de boi. Nas diversas viagens pelo sertão, nossos tropeiros, por mais de uma vez, encontraram muares de nossas tropas abatidos, retalhados e sem as principais peças. Quanto ao boi, os índios o matavam por simples maldade, ficando no campo, sem ser tocado.
Durante essa espera forçada, o seringueiro não se aborrece. Como lhe restou bastante dinheiro, passará esse tempo em festas, bailes, corurú, fandango e outras danças, conforme os costumes do Estado de onde veio. Já se vê que, chegado o tempo de partir, esgotado estará o dinheiro. Mas, para que dinheiro, se ele vai internar-se por mais de meio ano em plena mata virgem? O grande barracão, que as firmas mantêm no centro de cada seringal, para atender às necessidades de seu trabalhador, o suprirá de mantimentos ou do que necessitar para comer. A venda de bebida nos seringais não é permitida. Cada proprietário, quando da entrada do trabalhador em sua “estrada”, já há muito que mandou suprir o barracão, que é um grande rancho de palha, erguido em local mais ou menos acessível a cada lote de serviço, para evitar maior perda de tempo ao homem em caminhadas distantes.
Como vimos, o tirador de borracha ali permanecerá sozinho todo esse tempo, com seus apetrechos de trabalho, sua arma e seus santos. Esse isolamento será saudável para quem, como ele, passou dois ou mais meses de fartura e excessos de toda ordem, enquanto que, ali, o barracão, que será o seu fiscal de trabalho, deverá restringir o fornecimento ao estritamente necessário ao seu sustento, abstendo-o de toda e qualquer bebida alcoólica. Mas, via de regra, não há reclamação sobre essa abstenção. Ele se lembra das festas que deu e as dos amigos, cujo convite aceitou e, agora, descansando, sonha com outras iguais para o futuro, quando sair para o “comércio”, onde o espera a família que lá ficou, seus amigos e, em última análise, o ser humano, seu semelhante, que pouco verá em todo esse longo desterro.

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