Entrevista de Luiz Leduc à Gazeta de São Paulo, no dia 3 de fevereiro de 1959:

 

 

APRESENTAÇÃO DO PRESENTE TRABALHO

Trata-se de um trabalho oriundo dos meus diários de viagens, retratando o acompanhamento das atividades da antiga “Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas”, que passou a ser denominada de “Comissão Rondon”, desde a sua instalação, em 1907, no Governo do então Presidente da República, senhor Afonso Pena, quando Sua Excelência houve por bem confiar os árduos trabalhos desse empreendimento ao Capitão de engenharia, Cândido Mariano da Silva Rondon, contendo narrativas sobre:
Descrição da Organização da Comissão
Começo e continuação dos trabalhos de construção da Linha Tronco e outras
Tribos encontradas, umas bravias, outras não; hábitos e costumes, vários ataques sofridos, mas nunca revidados.

MEU PRIMEIRO ENCONTRO COM RONDON

Trabalhava eu numa firma de fotografias na Rua Gonçalves Dias, nº 2, no Rio de Janeiro. Nos primeiros meses do ano de 1907, chegou lá um senhor, apresentando-se como sendo o Major Rondon e dizendo que precisava de um fotógrafo e pediu:
-Eu quero um rapaz assim, assim, assim ...  e que não tenha medo do sertão. Não se paga muito.
Fui eu! Só eu.
Acompanhando o Sr. Francisco Xavier, cunhado e secretário particular do Chefe, dirigi-me à rua Santo Amaro, no Catete, sede da Chefia, onde já estavam alguns oficiais que em breve deveriam partir para Mato Grosso e que ali se encontravam para apresentação e despedidas. O Sr. Xavier entrou no interior da casa, para junto da família e eu fiquei na saleta, à espera de minha vez de ir à presença do Major.
A permanência dos oficiais prolongou-se e, em certo momento, em alguma sala próxima, um relógio bateu onze horas. Nesse instante, o grupo de militares e o Major apareceram onde eu me encontrava. Depois das despedidas e da saída dos oficiais, o Major veio a mim e, com um largo sorriso, apertou-me a mão. Impressionou-me particularmente esse homem que, agradavelmente, me recebia de maneira bem diferente da que eu esperava, acreditando que iria enfrentar um homem altaneiro, de semblante severo, seco e de poucas palavras.
Estava eu completamente enganado em minhas primeiras suposições. Não me deu tempo de falar sobre o motivo da minha presença, o que era que ali me levara. Segurou-me pelo braço e disse:
-Vai almoçar conosco! Desejo conhecê-lo um pouco mais. Logo, estaremos no sertão e lá nós nos sentamos no chão, ao redor de um couro de boi estendido, no que são servidas as refeições. Desde já, são dispensadas as atitudes cerimoniosas.
A senhora Francisca Xavier da Silva Rondon, esposa do Major, entrava, no momento, na sala, quando fui a ela apresentado. Indicaram-me um lugar, onde me sentei. O Major, dirigindo-se a mim, disse:     -Estou bem impressionado pelo que de si me foi dito. A Casa Marc Ferrez diz ser o amigo um hábil profissional e, antes de sua vinda para a Capital, era gaúcho nos campos gerais do Paraná. Folgo muito com isso, pois preciso de bons companheiros, afeitos à vida das campanhas, bons cavaleiros, resistentes, para suportar nossas andanças nas longas viagens nos chapadões, nas matas, a cavalo, a pé, sob o sol ou chuva, sendo que a água e os alimentos, quando e onde possível, sempre ou quase sempre sob condições as mais desvantajosas.
Dona Chiquita, como era chamada a esposa do Chefe, mostrou-se maternalmente solícita em atender-me à mesa, a servir-me do que a família usava, refeição vegetariana.
-Não usamos carne, senhor Luiz! Poderá passar sem esse prato hoje?
-Excelentíssima Senhora, sou do Sul, a vida na campanha adapta as pessoas a todos os regimes.
Encontrava-me empenhado em estudar aquele homem, que se me afigurava bem diferente do comum, estatura regular, rosto moreno, robusto, de falar rápido e incisivo. Tudo quis saber de mim, inclusive saúde. Também falou-me de seus encargos, como Chefe da Comissão, de suas responsabilidades e grandes preocupações, pela atenção por ele devida aos índios, tão abandonados que sempre foram pelos Governos, humilhados e perseguidos em algumas regiões, onde eram tidos como caça que devia ser abatida, por inútil e prejudicial aos interesses de muitos, mas que ele continuaria, como já o fazia há muitos anos, pela integral admissão do aborígene à sociedade, enfim, à Civilização. Pelo seu perorar contínuo, incansável em defesa do índio, compreendi perfeitamente a idéia que devia acompanhá-lo desde criança, de proteger o silvícola e erguer alto o seu moral, o moral do aborígene, raça da qual ele viera, tão amesquinhada, humilhada, pelo injusto conceito de que o índio não tem possibilidade de assimilação e por isso achavam que devia ser relegado a plano inferior. Sim, compreendi perfeitamente o seu pensar e a razão de ser: ainda criança, uma inteligência precoce o fez compreender a existência, entre os homens, de profunda diferença de classes, em parte conseqüência da diferença da cor da pele, quando tudo é negado ao indivíduo de cor escura, a começar pela instrução. Para este, quase um pária, estariam fechadas as portas do saber. Mas não, não seria assim! Ele prometia a si mesmo que, quando crescesse, lutaria contra essa injustiça. Na escola, onde já se encontrava, estudaria muito, nunca deixaria de estudar para, quando fosse grande, poder ajudar, proteger seus irmãos de raça, habitantes desprezados dos sertões do imenso Brasil.  Esse, o ideal que acompanhou Rondon a vida toda, mas que, como quase todo ideal, é difícil de ser alcançado. Em seus cinqüenta anos de buscas sertanejas, Rondon não conseguiu um passo sequer à frente nesse particular. Aliás, não seria tarefa para um só homem, mormente um homem sempre sobrecarregado de compromissos e encargos inerentes à profissão que abraçara e que em nada o ajudou, no muito que pretendia em favor dos silvícolas.
Rondon foi um puro. Bom amigo, coração de ouro, excelente Chefe, grande condutor de homens. Puritano por ideologia, procedimento impecável. Só conhecia o dever. Esse dever impedia-o de ir em visita à família, passando ele enormes períodos longe dos seus, como quando, de seis de maio de 1907, somente tornou a ver a esposa e alguns dos filhos, em fevereiro de 1909. Cansada de esperar sua ida a casa, a esposa, Dona Francisca, havia lhe pedido, em telegrama, licença para ir com ele encontrar-se, já que não era possível sua ida ao Rio. Aquiescendo, o Major marcou-lhe data e a cidade de Corumbá, aonde iria encontrá-la. Fazia um ano e nove meses que perdurava essa desnecessária separação. Nessa ocasião, via ele, pela primeira vez, sua filhinha, Maria de Molina, que havia nascido em 31de agosto de 1907.
Ainda, por esse mesmo motivo, o dever, conta Rondon nunca ter assistido a casamento de seus filhos, ter continuado sempre ausente nas pequenas festas de família, aniversários, festinhas escolares etc. Dona Francisca somente permaneceu em Corumbá e Cáceres, num curto período de férias, que ela exigiu do marido, de fevereiro até 12 de abril de 1909, quando a lancha Etrúria zarpava do porto de São Luiz de Cáceres levando, como ele dizia, “o que de mais caro para mim existia”.
O amparo moral de sua esposa acompanhou-o pela vida toda. Em seu livro “Rondon conta sua vida”, ele dedica tocante preito de amor e reconhecimento, demonstrando como foi grande, incomensurável, esse amor que, durante toda sua vida, foi o seu guia.


Major Cândido Mariano da Silva Rondon, em 1907
Rondon, o desbravador do sertão, o pacificador e protetor dos índios

Primeiro dirigente do Serviço de Proteção aos Índios, por ele criado em 1910
(função que ele já exercia extra-oficialmente)

Frases que ele sempre repetia:
“Morrer, se  preciso  for.  Revidar, nunca!”
“Estamos aqui como invasores e devemos respeitar os donos da terra”

 

A ORGANIZAÇÃO

Foi durante o último trimestre do ano de 1906 que, nas esferas governamentais do país, sendo Presidente da República o Sr. Afonso Pena, se cogitou da penetração das linhas telegráficas pelo Oeste, até o Estado do Amazonas. O projeto aproveitava os trabalhos já executados pelo Coronel de Engenharia, Antônio Ernesto Gomes Carneiro que, partindo da capital do Estado de Goiás, construiu a rede que avançou até a cidade de Cuiabá, Capital do Estado de Mato Grosso.
Para o desempenho da gigantesca tarefa, que constituiria o novo empreendimento, Sua Excelência o Sr. Presidente da República houve por bem escolher o oficial que havia sido o auxiliar imediato do Coronel Gomes Carneiro e seu braço direito, na trabalhosa construção, o Capitão de Engenharia, Cândido Mariano da Silva Rondon.
Chamado em janeiro de 1907, este oficial aceitou a pesada responsabilidade de tão penoso tentame, preparando-se, de pronto, para cumprir as determinações do Governo, na organização da expedição, que teria a designação de “Comissão das Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas”, depois cognominada de “Comissão Rondon”. Dada a eficiente e rara capacidade de trabalho e dinamismo incansável de seu notável organizador, em menos de três meses de preparativos os jornais da Capital de Mato Grosso anunciavam a chagada a Corumbá do navio Miranda, da frota do Loide Brasileiro, fretado especialmente para esse fim, trazendo numeroso pessoal e grande quantidade de material pesado.
Esse navio, saindo a 28 de março de 1907 do porto do Rio de Janeiro, chegava a Corumbá no dia 17 de abril seguinte.
Além de numeroso pessoal civil, seguiu um contingente do 5º Batalhão de Engenharia, com seus oficiais engenheiros, dos quais o mais graduado era o Capitão Custódio de Sena Braga. Esse contingente era o primeiro a seguir, composto de centenas de praças, tiradas de várias unidades.
Várias embarcações, estacionadas no porto, de companhias estrangeiras, da Mianowitch, Argentina e outras, saudaram com silvos prolongados a chegada do Miranda a Corumbá. Lá estavam, também, dois navios do Loide, o Cáceres e o Murtinho, estes à disposição da Companhia das Minas de Orucum que, na época, se encontrava em sua mais desenvolta atividade na extração do manganês. A Capitania imediatamente se fez representar a bordo, para visita e vistoria habitual. Um dos capitães, acompanhado de um tenente secretário, desceu à terra,  ficando para o dia seguinte o desembarque dos contingentes, dos civis e do material, que seriam enviados a seus respectivos setores, São Luiz de Cáceres e Cuiabá, onde teriam início as organizações dos trabalhos. Um capitão, acompanhado de seu secretário, fora procurar, junto ao Quartel General, a possibilidade de obter alojamento para a tropa que deveria desembarcar, pois que o transbordo para as lanchas, embora houvesse sido providenciado com tempo, não seria possível para aquele dia.
Da Capital do Estado de Goiás, chegava, na mesma época a Cuiabá, o Major Engenheiro Felix Fleury, trazendo um grupo isolado de soldados e trabalhadores de campo, além de tropeiros conduzindo selecionada tropa de muares de sela e de carga.
Esse numeroso pessoal iria dar início aos trabalhos de abertura dos picadões, construção e instalação de postes para as linhas telegráficas. Os picadões, com os postes instalados no meio, teriam a largura de quarenta metros, o necessário para evitar que as árvores, ao cair sob o peso de fortes ventos, alcançassem o fio estendido, quebrando-o.
A primeira construção, ou a Linha Tronco, seria de Cuiabá a Diamantino e a segunda seria o ramal de São Luiz de Cáceres à cidade de Mato Grosso, antiga Vila Bela, a capital dos Capitães-Generais, da época colonial, situada próxima à fronteira com a Bolívia.
Havia eu sido contratado, no Rio de Janeiro, para dirigir os trabalhos de fotografia e cinematografia da expedição. Para a fotografia, levaria uma máquina 18x24, com tripé e suas objetivas “Dagor de Goertz”, duplo-anastigmáticas, foco 1,8 e outra máquina 13x18, com objetiva de igual marca e ainda outra 9x12, com objetiva “Tessar de Zeiss”.
Para a cinematografia, um aparelho receptor e um projetor, ambos da marca “Pathé-Frères”, modestos como a própria arte em seus princípios. Da utilização do aparelho receptor, poucos foram os resultados obtidos, em virtude de se tratar de material há pouco entrado no país. Embora os aparelhos fossem de manejo singelo, como ainda hoje, os filmes virgens, de gelatino-bromuro, ainda não aplicáveis nos países tropicais, eram de curta duração, sendo esta diminuída pelas condições impróprias de seu aproveitamento na vida de acampamentos, em épocas de grandes chuvas e permanente umidade, pois a estação hibernal prolongava-se nas regiões dos nossos trabalhos, por longos meses. Com os laboratórios situados à distância de mais de um mês de viagem, os filmes não foram, infelizmente, aproveitados.
O aparelho projetor vinha acompanhado de duas dúzias de filmes de curta metragem, de sessenta metros, predominando as comédias, farsas e trabalhos de circo, que causaram sucesso onde foram exibidos, embora não muito repetidos, em virtude de nossas viagens, sem paradas demoradas para exibições continuadas. O material para exibição, sendo as projeções em tela de pano branco, não está sujeito a efeitos do bom ou mau tempo, como é o caso do aparelho receptor. São películas positivas secas, endurecidas. Os ingredientes para a sua manipulação limitavam-se, em campanha, ao emprego de luz artificial “oxi-etérica”, um composto de oxilito e éter. O oxilito é um mineral que, ao contacto com a água, inflama-se, projetando labaredas que, incidindo sobre o bastão de crê, torna-o incandescente, produzindo um foco de luz superior a duas mil velas e proporcionando, na tela colocada a uma distância de 20 metros, uma imagem focalizada clara e perfeita..
Na antiga Vila Bela, hoje cidade de Mato Grosso, ex-Capital do Estado, situada à margem direita do rio Guaporé, o sucesso alcançado por nossas exibições cinematográficas foi enorme. Os espectadores, que eram toda a população da valha cidade, demonstravam, aos gritos, o entusiasmo ante essa maravilha, jamais por eles vista nem imaginada. É que o progresso, tardio para esses longínquos recantos de nosso vasto país, ainda não havia atravessado a enorme distância que separava os centos civilizados dos limites onde as populações ainda não pareciam mui distanciados das épocas coloniais. “Pura magia”, “feitiçaria”, para a maior parte. “Novidades bonitas, vindas de fora”, para alguns. Filmes, como o do ladrão perseguido por policiais, com suas inúmeras peripécias, ou o matemático que enchia de números as costas do paletó do homem que descansava no banco de um jardim público, ou a calva de um outro, parado em frente a uma vitrine, promoviam palmas e gritos atroadores, uma hilaridade fora do comum. No entanto, por curioso que pareça, três Parecis que nos acompanhavam, trazidos por Rondon, ao contrário dos demais espectadores, permaneciam mudos e indiferentes. Rondon, insistindo por alguma manifestação, lhes perguntava: “Parecis acha bonito?” Respondiam: “Não sabe”. Insistindo na pergunta, Rondon obteve como resposta: “Eu está cansado, vai dormir”. Por que essa diferença entre o silvícola e o morador daquela cidade se, para estes também, o filme era uma novidade e de cuja existência eles nem desconfiavam?  Meses depois, Rondon, levando ao Rio dois rapazes Borôros, que lá aprenderam a se vestir bem, sabendo colocar gravata com um laço perfeito, já sabendo tomar o bonde na volta para casa, quando foram levados para visitar os grande teares nas fábricas de tecidos da Gávea, também não tiveram a menor reação, nenhum gesto de admiração pelas gigantescas instalações. Não demonstraram qualquer admiração nem a menor curiosidade pelo que viam. Mas, certa vez, quando eu estava em pleno sertão de Mato Grosso, num vasto campo a perder de vista, insistia com um Pareci para que ele olhasse num binóculo Goertz e ele nada via. Olhou muito, para dentro da lente e nada. Mas, num certo momento, deu um grito: “Boa para matar veado!” Havia conseguido ver árvores muito distantes, parecendo muito perto, dentro do binóculo.

 

A PARTIDA PARA O ESTADO DE MATO GROSSO
(Saída do Rio de Janeiro no dia 6.05.1907, chegando a Corumbá-MT no dia 27.05.1907)

Havia eu recebido instrução para proceder, antes de viajar, à experimentação dos aparelhos que me foram entregues para o cumprimento da missão, devendo partir mais tarde com o material completo para o Oeste. Embarquei no mês de maio, quando partia, por sua vez, o Chefe da Expedição.  Prevenido de que a partida seria no dia 6, encontrava-me, nesse dia, às três horas da tarde, com toda a minha bagagem, no cais Pharoux. (ex-cais do porto do Rio de Janeiro, na Praça Quinze).
Pouco antes das quatro horas, chegava o Major Rondon acompanhado de pessoas de sua família, inclusive seu cunhado, Francisco Xavier, Inspetor dos Telégrafos. Dona Francisca, que veio para a despedida do marido para mais uma longa separação, com seus votos de boa viagem a todos, me disse: “Cândido acredita que o senhor poderá ser um bom companheiro em suas sempre perigosas viagens, quando nem sempre cuida de ser prudente. Conservarei gratidão, pelo auxílio que a meu pedido lhe prestar”.
A partida do grande transatlântico estava marcada para as seis horas da tarde, tendo sido reservadas para essa viagem três passagens, pois o Sr. Francisco Xavier deveria acompanhar seu cunhado, o Major Rondon, até o Estado de Mato Grosso. Tratava-se do navio Araguaya, da Mala Real Inglesa, belíssimo paquete-correio, um dos maiores transatlânticos que na época faziam o serviço de passageiros entre a Europa e a América do Sul, até Buenos Aires e que nos levaria até Montevidéu, a Capital da República Oriental do Uruguai. Falhando por essa vez a proverbial pontualidade inglesa, somente às nove horas da noite deixamos o cais, demora essa que não traria qualquer inconveniente para os passageiros, a não ser o atraso do jantar, para depois daquela hora.
Luxuoso em suas instalações reservadas aos passageiros de primeira classe, era, na verdade, o que se poderia desejar de melhor conforto, serviço, passadio, tratamento em geral. Apesar de estranha para nós a cozinha inglesa, pois não a conhecíamos, demo-nos bem. É natural que, para atender à diversidade de países a que pertenciam os inúmeros passageiros, fosse a cozinha internacional, o que evitaria reclamações ou constrangimento de pessoas de paladar delicado.Verificamos, aliás, que o “maitre” do salão de refeições não descuidava desse particular, procurando colocar os passageiros em mesas de três ou quatro pessoas, sempre da mesma ou aproximadamente da mesma nacionalidade, cujo idioma, hábito ou costume fossem parecidos e sendo servidos por garçons que falavam ou compreendiam o idioma de seus anfitriões.
A cozinha do Araguaya devia ser o paraíso para os gastrônomos, de vez que, desde as sete da manhã, o salão de refeições encontrava-se aberto, com suas mesas postas, sempre recobertas de iguarias apropriadas para cada hora do dia. Nos momentos menos propícios aos alimentos de sal, digamos às duas da tarde, lá estavam as mesas preparadas com variedades de frutas e doces. Além dessa extraordinária fartura de acepipes e guloseimas, às dez horas da manhã apareciam no convés garçons sustentando grandes bandejas com tigelas de saborosíssimo caldo. De um passageiro que, em certo momento, se retirava do salão, ouvimos a seguinte reflexão: “Quelle belle vie, s´il n´y avait pas d´enfer!” (Que bela vida, se não houvesse o inferno!).
Do Rio a Montevidéu, o Araguaya levou exatamente quatro dias, tendo descido âncora às nove horas da noite de sexta-feira, dez de maio. Apesar do adiantado da hora, os passageiros que se destinavam a esse porto foram solicitados ao desembarque, aliás, com ampla assistência por parte do pessoal encarregado desse serviço, sempre solícito e atencioso. Fomos honrados com a presença do Comandante, Mr. Skinks, que veio até o portaló despedir-se de nosso Chefe, expressando seu desejo de felicidade para a continuação de sua viagem. O desembarque não se deu, entretanto, no momento marcado. Quando ainda das despedidas, subiu a escada um rapaz trajando uniforme da Marinha, que se dirigia ao Major, comunicando-lhe haver o Governo do Brasil enviado um navio, pertencente à frota do Loide Brasileiro, o Vênus, no qual o Chefe da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas continuaria sua viagem para Corumbá.
Assim, com os nossos adeuses ao gigante Araguaya, passamos para o pequenino paquete, agora em enorme balbúrdia de embarcações de todos os tipos, tentando, com as maiores dificuldades, acostar ao transatlântico, apressadas pelos repetidos sinais que dava o apito de bordo do grande navio, com pressa de sair barra afora.  Isto se dava em meio a um mar agitadíssimo, ameaçando a todo momento de colisão. Reinava verdadeiro atropelo.


O VÊNUS, DO LLOYD BRASILEIRO

 

A recepção a bordo do Vênus foi das mais amistosas. Recebêramos tratamento fidalgo a bordo do navio inglês. Agora, estávamos entre patrícios, entre amigos.
Indagando o Major se a partida seria ainda para aquela noite, respondeu-lhe o Comandante que não, porque acabava de receber um telegrama da Empresa, mandando que o paquetinho esperasse a chegada do Presidente eleito do Estado de Mato Grosso, o Sr. Generoso Ponce, que se dirigia para o seu Estado, a fim de assumir o cargo, ainda naquele mês.
As circunstâncias eram-nos favoráveis. Poderíamos, no dia seguinte, ir à terra, em passeio pela cidade, onde poderíamos adquirir alguns objetos que nos faltavam. Não deveríamos perder a oportunidade, pois Montevidéu era a última cidade que nos dava a certeza de podermos encontrar aquilo de que necessitávamos. No dia seguinte, às oito horas, tomamos um dos inúmeros botes que circundavam o navio, oferecendo transporte para terra. Fomos levados para o cais, por sinal ainda em construção na época.

 

MONTEVIDÉU – 10.05.1907

A Capital do Uruguai não nos deu a impressão de uma grande cidade, como esperávamos e na qual hoje se encontra transformada. O modernismo estava em grande atraso. O mau aspecto higiênico mesclava-se com o embelezamento de suas montras no comércio das principais avenidas.  Numa destas, vimos uma bem montada loja de modas, ao lado de um feio e pouco asseado açougue.  Os hotéis também nos pareciam modestos. Essa Capital Sul-Americana prosperou, entretanto, em meia dúzia de anos, a ponto de causar surpresa para quem, como nós, tornou a visitá-la. Não tivemos tempo de alongar nossos passeios até Pócitos, belíssima praia balneária, da qual tivemos notícia, na época, de que rivalizava com as européias, como as de Nice, Côte d‘Azur e tantas outras. Diziam que o lugar era onde o público elegante da Capital se encontrava, na época do estio. O homem uruguaio é, em geral, um belo tipo, forte, cheio de corpo, sendo raros os magros e os muito baixos. O mesmo direi da mulher uruguaia, antes alta do que baixa, de belas cores, parecendo não necessitar de pintura em demasia. Passamos todo esse dia na cidade, onde ficamos até o dia seguinte pois, segundo ficara convencionado, não tendo chegado até a tarde o navio no qual era esperado o Sr. Generoso Ponce, o Vênus somente sairia em dia e hora marcados pelo Chefe da Expedição. A temperatura baixara repentinamente, fazendo-nos procurar os cobertores muito cedo. Pela manhã, os termômetros marcavam zero grau. Desprevenidos de roupas adequadas às baixas temperaturas, fomos obrigados a uma permanência mais prolongada no leito, à espera de que o sol, que desde cedo se mostrara risonho, nos desse um belo e morno dia de meia estação.
Durante o almoço, nosso telefone interno do hotel tilintou. Era o aviso do Comandante do Vênus, informando que, estando já a bordo o Sr. Generoso Ponce, aguardava ordem do Major para a saída. A resposta foi um pedido para que o Comandante tivesse a bondade de enviar o escaler para o embarque às 14 horas. Assim se fez e às 14 horas e 30 minutos o Vênus levantava ferros, para uma viagem que duraria quinze dias, sem interrupção, até a cidade de Corumbá, no alto Paraguai, último trecho navegável para embarcações com o calado do excelente navio em que empreendíamos a viagem.
Acabava, assim, de ser recebido a bordo o Sr. Generoso Paes Leme de Souza Ponce, que deveria tomar as rédeas do Governo do Estado, tão logo chegasse à Capital, em substituição ao Sr. Manoel José Murtinho, cujo mandato findava. O Major Rondon, ao chegar a bordo, encontrou seus camarotes preparados, com toda a sua bagagem à mão.

 

RIO DA PRATA ACIMA  - 12.05.1907

O Vênus atravessou o pequeno trecho de mar, que separa o continente da embocadura do Rio da Prata, indo por este adentro e transpondo-o em toda a sua extensão, que é de cerca de 100 quilômetros, fazendo o percurso em cerca de 24 horas de subida. No dia seguinte, à tarde, chegávamos à confluência dos rios Paraná e Uruguai, onde eles formam um grande Y, deixando, aí, de costear, pela direita, o território uruguaio, para termos, de ambos os lados, terra Argentina.
No dia 13, ao amanhecer, um prolongado silvo das máquinas do Vênus nos acordou. Era o cumprimento convencional de uma bandeira a outra, de países diferentes. Passávamos pela direita da ilha de Martim Garcia, com sua povoação do mesmo nome. Pertencia à República Argentina, servindo, na época, de lazareto. Diziam que naquela exuberante vegetação, que tudo esconde, encontrava-se, disfarçada, poderosa fortaleza.
No dia 14, às 8 horas da noite, passamos pelo porto de Rosário de Santa Fé, grande porto comercial da Argentina e a segunda cidade daquela República, de onde partia um trem diário para Buenos Aires, correndo em terreno plano, num percurso de 12 horas. Quem viaja por essa ferrovia, ao sair de Rosário, começa a ver as plantações, sem limite, ora de milho, ora de trigo e de outros cereais, até as proximidades de Buenos Aires, quando aparecem os campos de criação de gado vacum, depois o lanífero e os campos de alfafa e capins selecionados para a criação de cavalos. Informou-nos, pessoa conhecedora da região, que o plantio e colheita desses imensos campos de agricultura eram feitos por europeus, principalmente italianos que,  duas vezes por ano, atravessavam o Atlântico, uma para o plantio e outra para a colheita, não tomando por sacrifício nem tempo perdido em viagem, visto o alto padrão de pagamento então em vigor na República Argentina. Não havendo passageiro para o porto de Rosário de Santa Fé, o navio não chegou a aportar, pois era elevado o tributo cobrado pela capitania, para atracação.
No dia 17, chegávamos a Corrientes, última cidade Argentina às margens do rio Paraná. Eram 9 horas da noite, não havendo, também, passageiro para esse porto. Todavia, fazia-se necessário ali se aportar, com o fim de proceder-se a reparos na câmara frigorífica, avariada desde a véspera, o que era de grande necessidade, para conservação dos alimentos. Aproveitamos para um pequeno passeio e entramos em um bem mantido Café, levando-nos a curiosidade a ver que qualidade de rubiácea nos serviriam. Achamos de muito boa qualidade o café, servido em pequenas xícaras, como no Rio de Janeiro. Estando a cidade às escuras, tivemos de voltar para bordo, logo após. A cidade possuía cerca de 16 mil habitantes, sendo o comércio regular. Já se ouvia, aí, dada a proximidade com a República do Paraguai, o idioma guarani, falado em toda parte, sendo o castelhano apenas de uso oficial e obrigatório. Assim o era, como ainda hoje, em toda a República do Paraguai e suas vizinhanças. Mesmo na Capital do Paraguai, o guarani é falado pela população, que o prefere e o tem como língua mater, embora todos falem, também, o idioma de Castela. Diziam que, nas Câmaras do Congresso, era obrigatório o espanhol mas, quando surgia cerrada discussão entre os respeitáveis Edis, descambavam facilmente, sem o sentir, para o baixo calão guarani, no qual os desaforos eram mais abundantes, vindo mais facilmente à tona.
No dia seguinte, à tarde, deixamos o rio Paraná, penetrando na foz do rio Paraguai, um pouco além do ponto onde se deu a grande batalha naval durante a guerra de 1865, feito heróico da Marinha brasileira e onde se encontra o memorável Passo da Pátria, assim chamado por ser o local onde o Exército brasileiro, sob o comando do Duque de Caxias, forçou a resistência do inimigo, que se encontrava fortemente armado, nas duas margens, pondo a força paraguaia em debandada, fazendo centenas de prisioneiros e apreendendo copioso material bélico. Já no rio Paraguai, empolgado de entusiasmo, subi ao convés e, tirando o boné, exclamei: “Ó margens, testemunhas mudas de glórias passadas, eu vos saúdo!”
No dia imediato ao de nossa entrada nesse rio, apareceram as praias de areias alvas, sob os raios do sol e, por ali espalhados, os enormes jacarés, aos grupos de dezenas, quiçá de centenas, tais as vastas áreas ocupadas, aquecendo-se ao sol, indolentes, olhando-nos pachorrentamente, sem que lhes chamasse a atenção o rumor das máquinas de nossa embarcação. Mais tarde, eram vistos postados nas bocas dos riachos, à espera dos pequeninos peixes, que descem por esses cursos d‘água.
No dia 19, pela manhã, passávamos pela antiga fortaleza paraguaia de Humaitá. Aí, também, nossa Marinha se distinguiu, ao mostrar ao mundo o seu grande feito, forçando a passagem, valentemente defendida pelos paraguaios. Estes haviam empregado esforços quase inconcebíveis, usando também de uma tática que lhes havia parecido infalível para impedir a passagem da esquadra brasileira, cuja subida pelo rio lhes havia sido anunciada. Colocaram, atravessadas ao rio, grossas correntes, com o objetivo de impedir a passagem de nossos navios que, assim expostos ao fogo de seus canhões, seriam facilmente dominados e aniquilados todos os nossos soldados, até o último homem. Colocaram, também, nas margens, colossais montes de lenha, para serem acesos à noite, a fim de iluminarem o alvo, facilitando-lhes a vitória. Não contavam eles, entretanto, com uma ocorrência que nos foi inteiramente favorável: com a continuação das chuvas, que caíam incessantemente, durante vários dias, as águas do rio cresceram, atingindo altura fora do comum. Nossos navios, subindo o rio vagarosamente, passaram pelas correntes, que ficaram atravessadas muito abaixo e as fogueiras, acesas pelo inimigo, iluminaram o seu próprio campo, facilitando-nos o aniquilamento quase total dessa mísera guarnição, que preparou, com suas mãos, a sua própria ruína.
Às 5 horas da tarde desse mesmo dia, chegávamos a Assunção que, na época, em 1907, era uma cidade de dimensões reduzidas, aniquilada pela nefasta guerra de 1865, ainda atrasada, sem se ter refeito, até então, das misérias passadas. No entanto, em sua rua principal, notava-se como que uma tentativa de ressurgimento: entre botecos, uma pequena loja, com montras bem apresentadas, oferecendo mercadorias de luxo, de moderna elegância. Edifícios antigos, arruinados, ainda com traços da guerra. As repartições públicas, como o Correio, funcionando em um velho casarão, sem comodidade para seu pessoal e muito menos para o público, com falta absoluta de higiene, com uma ala para o Telégrafo, parecendo instalado provisoriamente em um antigo convento dos jesuítas, dos vários ali existentes. Vimos sair, dessa repartição, uma guarda composta de 12 soldados, mal uniformizados e, o que nos pareceu comovedor... estavam todos descalços! Fuzil ao ombro e pés desnudos! Outra curiosidade, que vimos nessa Capital, foi o mercado, para nós totalmente “sui generis”. Um imenso barracão, onde se vendia de tudo, em matéria de comida, ocupado por centena de mulheres, vendedoras de gêneros e de quinquilharias, com outro tanto de compradores, formigando por entre os cestos e mesas, caixotes e balaios, comprando e discutindo preços. Esse, o mercado gigante de Assunção, Capital do Paraguai! Não havia vendedores homens nesse mercado. Era exclusivamente de mulheres, mesmo na parte dos açougues, onde se viam alentadas paraguaias empunhando enormes machados, mangas regaçadas, desmanchando um boi. Extraordinariamente curioso! Diante de minha admiração, vendo tão pesado serviço executado por essas mulheres, uma delas me perguntou:
-Le gusta a usted mirar las paraguaítas?
Tive que responder, dizendo-lhe:
-Como não, senhora? São todas mui belas!
E, a certa moça que se aproximara, perguntando-lhe preços, a mesma senhora respondeu:
-La carne es un peso la pieça, pero los corazones son grátis.
Volvendo-se para mim, disse ela:
-Verdad, muchacho?
A moça encabulou-se e eu também. Passei adiante. Como em toda parte, a falta de higiene era patente. Imundice e moscas por cima das carnes ali expostas e em outras mercadorias, em grandes enxames. Fora, na grande praça, calçada de pedras desiguais, num grande perímetro, estavam as vendedoras de legumes, de muitas variedades. Frutas de todas as espécies, próprias de países tropicais, onde vi, pela primeira vez, o caquí. O nome fez lembrar, por sinal, haver sido dado a essa fruta, em virtude de sua cor, exatamente igual à do pano caqui, usado para roupa de homem. Ao lado dessa grande praça interior, grande número, talvez duas centenas de jumentos estavam agrupados, quietos, alguns com o embornal de milho, comendo sua ração, pachorrentamente. Ali esperavam, pacientes, suas donas, para voltar à querência, uma vez terminado o movimento do mercado e acabados os negócios, não como vieram, carregados de grandes cestos de hortaliças e outras mercadorias, mas levando de retorno suas proprietárias, a quem se prestam de bom grado, com a boa filosofia de fiel amigo.

Três dias de permanência em Assunção, foram suficientes para que víssemos toda a cidade. Visitamos o que de interessante havia, deixando, entretanto, de visitar o museu, o único existente, segundo nos disseram, mas de grande interesse, pelas suas curiosas e raríssimas coleções de objetos de artes antigas, principalmente etnográficas. Não se achava franqueado ao público, em virtude de remodelação e reclassificação de seus tesouros. Disseram-nos ter sido esse museu organizado pelo próprio Solano Lopez. Todavia, uma visita encantadora foi a que fizemos a duas grandes oficinas de confecções para senhoras, em Nhandutí. Em ruas próximas ao centro, essa maravilhosa indústria encontrava-se instalada em salas de grandes dimensões, no interior das quais teares de vários tipos e tamanhos encontravam-se em franca atividade, operados por moças que ali confeccionavam peças para adornos de vestidos e mesmo vestidos inteiros. Em um desses teares, vimos várias partes de um vestido para noiva. Depois de pronto, seria, por certo, classificado como obra de arte, de alto valor. Grande e variado sortimento de peças já prontas, tivemos a oportunidade de ver: blusas, boleros, casacos, lenços, mantilhas etc. Adquirimos algumas daquelas peças, não resistindo à tentação de possuir e trazer para o Brasil tão belo e delicado tecido de seda. Todos esses trabalhos, aliás, feitos unicamente de seda. Ainda hoje, passados 50 anos, algumas dessas peças ainda se encontram conservadas nos armários da família e em uso, entre as quais um casaco e uma capa de sombrinha, de rara beleza.
No dia 19, ao meio dia, nosso Vênus levantava ferros, deixando o porto de Assunção. Ao embarcarmos, vimos, na outra margem do rio, fundeada, a canhoneira Argentina “Los Andes”. A cidade, vista de longe, no estirão do rio, apresentava um conjunto agradável, em virtude de sua situação, edificada na encosta de uma colina, tendo como moldura, ao longe, muito distante, baixa cordilheira azul, talvez o famoso Cerro Corá. Via-se, no entanto, como curiosidade de momento, um grande edifício, o Palácio Presidencial, destacado de outras edificações, apresentando o discordante de um enorme rombo, em sua fachada principal, vestígio da época dos bombardeios pelos canhões de nossa esquadra. Por que razão, depois de tantos anos,  conservavam ainda esse sinal de destruição, em guerra que já ia cerca de meio século de distância? São mistérios da história. Do porto de Assunção em diante, teríamos de sofrer pequenos atrasos, por várias vezes, motivados por encalhes do navio a todo instante, em virtude de estar o rio em vazante.

No dia 23, passamos pela pequena e importante cidade de Conceição, surgida depois da guerra, tendo progredido e desenvolvido com rapidez, segundo diziam, pela facilidade no comércio de contrabando, exercido pelos comerciantes do local, na fronteira com o Brasil. Seria esse o último porto estrangeiro por onde passaríamos.
A 24 do mesmo mês de maio, às 9 horas da manhã, alcançamos o primeiro porto brasileiro, no Estado de Mato Grosso, Porto Murtinho, que na época não era uma cidade, mas apenas uma localidade, mantida pela industriosa Companhia Mate Laranjeira. Os habitantes da vila eram todos funcionários dessa companhia, restando apenas, estranhos a ela, os funcionários dos Correios, do Telégrafo e da Alfândega que, em suma, não deixavam de ser agregados dessa importante organização brasileiro-paraguaia. Depois de um pequeno passeio em terra, zarpamos, para chegar, no dia seguinte pela manhã, a Forte Coimbra, pequena base naval brasileira, junto à fronteira no extremo Oeste. A demora aí foi pequena, apenas o tempo de nosso Chefe receber a visita de vários oficiais dessa base, que o foram cumprimentar, deixar e receber correspondência.

 

CHEGADA A CORUMBÁ-MT, NO DIA 27.05.1907

Assim, no dia seguinte, a 27 de maio de 1907, chegávamos a Corumbá, ponto final dessa longa viagem de 21 dias através do mar e de rios. Três semanas de férias bem gozadas!

A recepção que tiveram as duas eminentes figuras, nessa cidade matogrossense, foi solene. Chegava ao Estado o seu futuro Presidente, cuja posse estava marcada para o mês de agosto. A par das homenagens prestadas pelo povo ao Chefe do Executivo, foi condignamente festejada a chegada do Chefe da Comissão das Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, o Major Cândido Mariano da Silva Rondon, cujos trabalhos, a serem encetados em breve, deveriam trazer notável desenvolvimento a todo o Estado, em toda a sua vasta região, de Leste a Nordeste, beneficiando cerca de um milhão de quilômetros quadrados desse vastíssimo território nacional.

Após nossas despedidas ao comandante do Vênus e demais membros da tripulação, preparamo-nos, já então saudosos do nosso excelente vaporzinho, para o prosseguimento da viagem até São Luiz de Cáceres, onde teriam início os trabalhos de campo, propriamente ditos. Compreenderiam levantamento da região, trabalhos de astronomia para determinação das coordenadas geográficas do local, abertura de picadas de quarenta metros de largura, com derrubada de mata, construção e instalação de postes de madeira e a colocação dos fios da rede telegráfica. Houve, todavia, necessidade de prolongarmos nossa estada em Corumbá para alguns trabalhos de escritório, razão pela qual permanecemos seis dias nessa cidade.                                             
Corumbá é o principal porto comercial e a segunda cidade em população do Estado de Mato Grosso. Segundo alguns enciclopedistas da época, a palavra Corumbá significa lugar insignificante, perdido a grandes distâncias. Em verdade, possuía cerca de quinze mil habitantes. Seu nome primitivo era Albuquerque, em homenagem ao Capitão-General Luiz Albuquerque Pereira e Cáceres, seu fundador, em 1778. Situa-se à margem ocidental do rio Paraguai, no ponto onde finda a navegação considerada de grande calado. Muitos são os navios de outras nacionalidades que aportam a Corumbá, trazendo mercadorias para o Estado, servindo também à parte oriental da Bolívia, via Porto Suarez, porta de entrada para aquela República, situado a cinco quilômetros daquela cidade. Corumbá é a sede do município do mesmo nome, que compreende, ainda, Ladário, Dourados e Forte Coimbra. Depois do início do século, quando se encontravam em franca atividade os trabalhos de extração de manganês nas minas de Urucum, situadas a seis quilômetros da cidade, navios do Loide Brasileiro, como o Miranda e o Murtinho, transportavam esse precioso minério para o estrangeiro.

 

6  DIAS, A MONTANTE DO RIO PARAGUAI. CHEGADA A SÃO LUIZ DE CÁCERES DIA 6.06.1907 

A 1º de junho de 1907, embarcávamos em Corumbá, na lancha Etrúria, de propriedade da firma José Dulce & Cia, estabelecida em São Luiz de Cáceres, para onde nos dirigíamos. Esta cidade encontra-se à margem esquerda do rio Paraguai, alguns quilômetros abaixo da barra do rio Sepotuba. Tanto este rio como o Paraguai não são navegáveis, da cidade de São Luiz de Cáceres para cima, a não ser por pequenas embarcações, as zingas, ou pequeninas lanchas com motor de popa.
A viagem na lancha Etrúria durou 6 dias, até São Luiz de Cáceres, onde chegamos a 6 de junho, data em que fazia exatamente um mês que partíramos do Rio de Janeiro. Chegávamos, assim, ao final de nossa viagem, nosso futuro centro de operações. Novas despedidas e novos agradecimentos a todos quantos nos haviam dispensado suas atenções.
Em São Luiz, deixamos o Etrúria, excelente paquetinho que, embora não tendo as dimensões do Vênus, poderia oferecer algum conforto a quem acabava de gozar das comodidades do Araguaia e do Vênus. As outras lanchas, que serviam passageiros nas duas linhas, a de São Luiz de Cáceres e a de Corumbá a Cuiabá, não ofereciam qualquer espécie de conforto. Os passageiros dormiam em redes, pelo convés, corredores ou onde fosse possível acomodar-se, em baixo do toldo ou ao ar livre.
Logo à nossa chegada a São Luiz de Cáceres, tivemos más notícias, vindas do acampamento da Comissão, instalado no mês anterior, onde grassava varíola. Falava-se em algumas baixas entre as praças do primeiro contingente. Esse primeiro acampamento havia sido instalado à margem direita do rio Paraguai, que banha a cidade de Cáceres, a cerca de 5 quilômetros. Foi aí, que surgiram os primeiros casos de varíola. A epidemia teria tido origem nessa baixada, cujas terras, em sua maioria, achavam-se inundadas, em virtude da existência de grupos de pequenas baías ou brejos, com grandes extensões cobertas de água. Com a chegada do primeiro médico que serviu à Comissão, o doutor Armando Calazans, o acampamento foi transferido para outro local, a uma dezena de quilômetros, em terreno mais alto, em campos da antiga Fazenda da Caiçara.

 

Assim, quando chegamos, os doentes já haviam sido transferidos para um isolamento de emergência e o restante do pessoal para o novo acampamento. Por todo um mês, ainda apareceram doentes, alguns casos novos, que o doutor Armando Calazans, com sua extrema dedicação, conseguiu dominar completamente, ao fim do primeiro mês.
No local do novo acampamento, tinha início, em épocas remotas, uma estrada que ligava São Luiz de Cáceres à antiga Capital, a cidade Mato Grosso, ex-Vila Bela. Abandonada durante todo um século, sem qualquer movimento, o rio tomou seu antigo domínio, inundando extensa área. Para o início dos trabalhos da Comissão, as dificuldades com o transporte do material pesado foram imensas, tendo sido superadas com o auxílio de uma lancha a vapor, da Capitania de Corumbá, que fez chegar ao acampamento, entrando por pequenos braços do rio e ziguezagueando por entre baías e grandes alagados, todo o material necessário.  Pôde, assim, o Major Felix Fleury, dar início à construção do ramal de São Luiz de Cáceres à cidade de Mato Grosso e continuar a instalação do fio telegráfico.
O auxílio dessa lancha, denominada Floriano Peixoto, foi de grande valia para os nossos trabalhos.

 

 

SAÍDA DO ACAMPAMENTO CAIÇARA , PARA A CIDADE DE MATO GROSO (EX-VILA BELA), ANTIGA CAPITAL DO ESTADO, NO DIA 21.06.1907

A 21 de junho, saímos para nossa primeira viagem de exploração e reconhecimento da região, onde deveria ser construído o trecho a cargo da primeira Seção desse ramal que, iniciado em princípios de junho de 1907, ficou concluído em fevereiro de 1908 e foi inaugurado no dia 24 desse mês.
Eram nove horas da manhã, quando saímos do acampamento da Caiçara, numa pequena comitiva, constituída do Major Rondon, Major Fleury, eu e três soldados que levavam nossa pequena tropa de cinco cargueiros e a indefectível matilha de 11 cães. O Major Fleury, a quem o Major Rondon havia confiado a chefia dos trabalhos dessa Seção, manifestou o desejo de conhecer o futuro cenário de suas atividades, acompanhando o Chefe da Comissão para estudar e discutir com o mesmo o traçado da linha. O Major Rondon, por sua vez, desejava conhecer, além desse traçado, toda a faixa compreendida entre a cidade de Mato Grosso e a fronteira da República da Bolívia, até o grande lago de Salinas, tendo sido encarregado pelo Sr. Presidente da República, Afonso Pena, da elaboração de minucioso relatório sobre a região.
Essa primeira viagem teria um percurso aproximadamente de 800 quilômetros, passando apenas por um aglomerado de casas, que era a cidade de Mato Grosso, ex-Capital da então Capitania de Mato Grosso, ao tempo dos Capitães-Generais, quando essa cidade tinha o nome de Vila Bela da Santíssima Trindade de Mato Grosso, ou simplesmente Vila Bela. No trecho de 22 léguas, entre São Luiz de Cáceres e a travessia do Jauru, no porto então denominado de Registro, passamos por diversos sítios e moradores isolados e duas fazendas: a do Caeté, junto ao ribeirão do mesmo nome, de propriedade de Dona Feliciana, senhora de algumas posses e que muito nos auxiliou durante todo o tempo em que o pessoal da Comissão transitou pela região e a fazenda de José Jorge, também abastado fazendeiro, instalado à margem direita do Jauru, próximo ao porto de Registro. Este nome de Registro foi mudado pelo Chefe da Comissão, para o de Porto Esperidião, em homenagem a um distinto engenheiro, natural de Cáceres, que teve a infelicidade de adoecer, atacado de sezão, em seus trabalhos no Guaporé, vindo a falecer na cidade de Mato Grosso, abandonado e sem recursos médicos, sem tratamento de espécie alguma, desprovido de remédios apropriados para tão nefasta enfermidade. Atravessando o Jauru, alcançamos o Guaporé, em cuja travessia, nesse mesmo ano, o Major Rondon mandou construir uma bela ponte de madeira, que até a presente data  ainda se encontra dando passagem a tropas e carros de bois. A distância nessa última etapa foi igualmente de 22 léguas e não encontramos qualquer casa nem viva alma viajando em qualquer sítio. Em Guaporé, vimos, num mísero rancho de palha, quatro soldados semi-abandonados, sezonáticos e famintos, que ali se encontravam, enviados pelo Comandante do destacamento militar de Cáceres, a pedido das autoridades do Estado, a fim de auxiliarem na travessia do rio, feita em pequena canoa. Raros eram. Entretanto, os viajantes que passavam por aquelas bandas. Disse-nos o Cabo, comandante dessa pequena unidade, que muitos meses se passavam entre a travessia de uma e de outra pessoa. O Major, fornecendo mantimentos e medicamentos a esses pobres soldados, prometeu-lhes que a permanência nesse posto seria agora de curta duração pois, com a construção de uma estação telegráfica no local, o pessoal civil dos telégrafos viria substituí-los. Aproveitamos o fogão do rancho, para o preparo mais cômodo de uma refeição avantajada.  Em seguida, passada toda a tropa de animais por água e o pessoal na canoa, seguimos nossa viagem. Desse ponto, até Vila Bela, percorremos ainda 12 léguas, sem encontrarmos qualquer pessoa.



CHEGADA À CIDADE DE MATO GROSSO, NO DIA 30.06.1907

No dia 30 de junho de 1907, à 7 horas da noite, chegávamos à velha e abandonada cidade de Mato Grosso, ex-Vila Bela, ex-Capital do Estado. Devo confessar que, quem, como nós, ali penetra durante a noite, pela primeira vez, recebe um impacto emocional muito forte. Já por várias vezes, havíamos ouvido falar de Mato Grosso, por alguns denominada “cidade maldita”, termo esse sempre corrigido pelo Major, quando  o ouvia, para “cidade triste”. Sua entrada, na escuridão da noite, através de ruas desertas, sem luz, sem qualquer som indicando a existência de vida humana, por entre filas de massas negras, de aspectos estranhos, pedaços de casas, de muros, ruínas que ainda se destacavam no fundo negro do céu, formando um conjunto dos mais extravagantes, eram como enormes fantasmas ameaçadoramente inclinados sobre nós, parecendo querer impedir a entrada de imprudentes viajantes nessa malfadada cidade, ou como gigantes de mãos postas aos céus, a pedir misericórdia, para o resto de seus infelizes moradores. Afinal, percorridas as suas ruas, lobrigamos, no final de uma delas, luz no interior de uma casa com uma janela aberta. Aproximamo-nos. Ao nosso “óh, de casa!”, apareceu um morador. Depois de perguntas e respostas, soubemos dele que não faltavam casa onde nos alojarmos. Ali mesmo, na esquina, havia uma grande, cujas portas ele iria abrir e onde poderíamos encontrar abrigo para todos nós, os Majores Rondon e Felix Fleury, eu e os três soldados. Quanto aos animais, levaria nosso tropeiro a ver um pasto fechado, onde a tropa encontraria capim. Estávamos perfeitamente pagos dos arrepios e da má impressão recebidos à entrada. Portas e janelas abertas, tomamos conta da casa. Boas paredes, tetos e telhados bem conservados, embora sempre desocupada, como tantas outras nessa e em outras ruas, por falta de moradores. Segundo nos informaram, havia ruas com a maioria das casas vazias, algumas ainda em regular estado, como aquela em que estávamos, outras já sem a frente, com paredes caindo, inúmeras em ruína por toda parte.
A cidade era habitada exclusivamente por gente de cor. Contaram-nos, seus habitantes, que os brancos, em outras épocas, atacados de malária, foram-se retirando em busca de tratamento, morrendo a maioria ali mesmo, sem qualquer recurso médico. Ficaram, assim, as casas abandonadas, só restando os habitantes de cor, mais resistentes às endemias. Encontramos ali grande quantidade de ex-escravos, de idade bastante avançada, barbas e cabelos completamente brancos, verdadeiros macróbios.
Em poucos momentos, tínhamos lenha, água e luz, que vários moradores, atraídos pela presença de visitantes, nos trouxeram. Uma hora depois, nosso cozinheiro nos anunciava estar pronto o jantar. Nosso cargueiro de cozinha trazia sempre alguma cousa de fácil preparo para uma refeição. Terminada esta, na qual dois moradores do local nos acompanharam, servindo-se de pé, pois uma banqueta que havíamos trazido para servir de mesa na viagem não comportava mais de 3 talheres, cada um de nós tratou de procurar lugar para armar sua rede, preparando-se para o descanso. Nesse momento, pareceu-me ouvir, como em surdina, à distância, vozes entoando cânticos religiosos. Fui à janela, para ver o que seria e de onde provinha esse canto. Fiquei surpreendido com o que vi: num dos cantos externos da casa, um grande grupo de pessoas ajoelhadas, talvez umas 50, estando a rua clara, com luzes em profusão. Que seria? Que significaria aquilo? Saindo à rua, verifiquei haver, na parede, em um canto, um nicho com uma imagem. Estava ali parte da população, em preces, possivelmente em nossa intenção, homens e mulheres, ocupando um trecho da rua, de lado a lado.  As mulheres e as crianças, com a cabeça coberta de xales, o rosto completamente escondido, os homens de cabeça descoberta, todos em genuflexo, formavam conjunto curioso, místico. A iluminação, de bom efeito, provinha de grande quantidade de candeias, feitas de cascas de laranja amarga, cortada ao meio e cheias de azeite de mamona, com pavio de algodão. Essas candeias, enfileiradas junto à casa e no nicho, formavam um conjunto curioso, ao mesmo tempo belo, que daria excelente fotografia. Infelizmente não tínhamos, nos apetrechos, o necessário magnésio, para fotografia à noite.
No dia seguinte, 1º de julho, percorremos a cidade. Em plena luz do dia, não havia aquele temeroso aspecto, com aparência de gigantes e duendes a nos impressionar. Algumas ruas tinham quase a totalidade de suas casas em regular estado. A igreja Matriz, ainda em bom aspecto, resistia bem à ação do tempo. Apenas as paredes externas estavam sem caiação e pintura, mantendo-se, porém, ainda firmes. Por dentro, o madeirame apresentava começo de deterioração no assoalho, grades e tampas de sepulturas. As imagens ainda se encontravam mais ou menos bem conservadas em seus nichos. Em um sino caído ao pé de uma parede, via-se a data de 1755 e nas inúmeras sepulturas que havia na igreja, outras datas posteriores a essa. A qualquer hora em que ali se penetrasse, movimentavam-se legiões de morcegos, moradores centenários daquelas respeitáveis  ruínas, senhores absolutos do recinto.
A Igreja de Nossa Senhora do Carmo estava em completa ruína, apenas restando as paredes. Do telhado, nada havia mais. Nessa igreja, convertida em cemitério, foram sepultados os restos mortais do engenheiro civil, Dr. Esperidião da Costa Marques, falecido longe da família, sem um médico à cabeceira, sem uma farmácia para aquisição de medicamento, tratado somente com remédios caseiros, mezinhas, de algum curandeiro, tendo apenas, em sua agonia, para amenizar-lhe os sofrimentos, uma boa e caridosa velhinha, que o amparou, com o desvelo de mãe, até o passamento. Humilde sepultura, a um canto, no interior da igreja, ficou sendo a sua derradeira morada e que as paredes, muito altas dessas ruínas, deverão, com o tempo, esconder para sempre, com o seu fatal desmoronamento. Foi em homenagem a esse engenheiro, que o Major Rondon deu o nome do Porto Esperidião, ao Porto até então denominado de Porto de Registro, no rio  Jauru, conforme relatado linhas atrás, Porto esse que  ficava na passagem entre Cáceres e Vila Bela.
Outra igreja ainda havia, a de Santo Antônio, pequena e por isso mesmo em melhor conservação e que o povo freqüentava, para suas orações. Estava situada à margem do rio Guaporé. Um cais de pedra, de alguns metros de altura, em patamar, envolvendo-a, servia-lhe de proteção contra periódicas enchentes. Não fôra essa providência, há muito já não existiria, com a alta das águas, que algumas vezes iam acima do parapeito. Esse cais foi construído pelo 4º Capitão-General, D. Luiz de Albuquerque Pereira e Cáceres, que também mandou construir a grande igreja Matriz. Na igreja de Santo Antônio, estão sepultados Ricardo Franco de Almeida Serra e Adriano Taunay, conforme consta do livro “O rio Guaporé e sua mais ilustre vítima”, do Visconde de Taunay.
O Palácio dos antigos potentados, que imperavam em Mato Grosso, fazendo as vezes de soberanos, era um vasto casarão, em ângulos retos, de um só telhado, com portas para o nascente e um bom número de janelas. A entrada dava para o saguão espaçoso, do qual se passava para as diversas dependências, vendo-se grandes salões de um e de outro lado, com as alcovas ao fundo. O aspecto, tanto interior como exterior, era de ruínas – pisos, paredes em muitos lugares sem reboco, caiação e pinturas, conservando, ainda, de notáveis, dois afrescos da época dessas construções, um deles infelizmente bastante danificado pelo tempo, não permitindo ver-se a cena por completo, mas o suficiente para ser compreendida: um navio, pronto a levantar âncora, no porto de Lisboa; no convés de popa, um homem em grande uniforme militar, provavelmente um Capitão-General, no momento de embarcar para a nova colônia portuguesa, o recém-descoberto continente, aonde iria assumir o alto cargo que lhe teria sido confiado pelo Governo de Sua Majestade Lusitana. Com um lenço na mão, fazia sinais de despedida a uma mulher que, em pé no cais, chorava. A seu lado, um cupido de asas, também chorando. Deduzia-se, daí, que o pintor quis representar a abnegação e a coragem desses fidalgos que, deixando na capital portuguesa suas esposas, exilavam-se, voluntariamente, para longínquas e desertas paragens, à mercê das nefandas e traiçoeiras enfermidades, originárias de países recém-conhecidos. A inscrição, abaixo desse afresco, completamente ilegível, pelo pouco que se podia ver, era em latim.
Sobre o portal de uma alcova, distinguia-se outro afresco, em melhor estado de conservação, nas dimensões de 1,00 m x  0,80 m, representando rico quarto, luxuosamente mobiliado. Apresentava uma mulher sentada em um sofá, vestida em alta toalete da época, tendo a seu lado um homem deitado, com a cabeça sobre o seu colo e um pequeno cupido com os braços estendidos sobre ambos. Em baixo, uma inscrição em francês: “Les plaisirs falâtres desarment les héros!” (os loucos prazeres desarmam os heróis) – alusão aos homens ilustres e poderosos, perante o amor.
Como curiosidade, vimos o quartel, quase em ruínas, existindo, todavia, duas alas, com suas paredes equilibradas, algumas portas, várias janelas, mas sem as suas ferragens, tendo os moradores do local explicado que os índios roubavam, em suas periódicas incursões, tudo o que fosse de ferro, de pequenas dimensões, para ser utilizado na caça ou na guerra, na extremidade de suas flechas. Essa velha edificação, de cerca de 30 metros de frente, encontrava-se a uns 100 metros do Palácio. Ainda de pé, lá estava o grande portão, cuja frente, trabalhada em motivos triangulares, dava-lhe um aspecto mais artístico do que aquilo que se via no feio e acachapado Palácio. Como este, apresentava o quartel a forma de um grande quadrilátero, com 12 janelas de frente e 6 em cada fachada lateral. O contingente nele aquartelado poderia ser de mais de uma centena de praças, eficiente, talvez, para a necessidade de conseguir o respeito em nossas fronteiras e a colocação de destacamentos em diferentes pontos da mesma. Ainda eram vistas, no interior dessas velhas ruínas de caserna, jogadas pelos cantos, velhas armas, inservíveis, alguns canhões, entre os quais um bem conservado.
Da antiga Câmara Municipal, apenas uma parede de pé, cercada de um monte enorme de entulho, sepultando riquíssimo arquivo de preciosíssimos documentos, colecionados, talvez, durante três quartos de século, que foi o tempo de duração e permanência de Vila Bela como cabeça do grande Estado de Mato Grosso.     

A cidade de Mato Grosso, segundo relatórios da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, encontra-se na Latitude Sul de 15 ° 0‘ 12“ e Longitude de 16 ° 46‘ 45“ a Oeste do Rio de Janeiro. Está situada à margem direita do rio Guaporé. Foi fundada pelo Capitão-General D. Antônio Rolim de Moura Tavares, 1º Governador da Capitania de Mato Grosso, com o nome de Vila Bela da Santíssima Trindade de Mato Grosso, a 19 de março de 1752. Esse Governador foi, mais tarde, agraciado com o título de Conde de Azambuja. Com o nome de Mato Grosso, passou a ser a Capital do grande Estado. Anteriormente ao início da colonização do Brasil, o lugar existia como simples povoação, local de pouso de bandeiras partidas de Cuiabá, em busca de ouro e da escravização do gentio, sendo conhecido pelo nome de Pouso Alegre. Por verdadeira ironia da sorte, um século depois, foi cognominada, pelos seus próprios habitantes, de “cidade maldita”. Quando, entretanto, lhe foi dado o primeiro nome de Pouso Alegre, como simples lugar de pouso de comitivas de limitado número de pessoas, ali aportadas apenas para descanso e pequena estadia, podia perfeitamente assentar-lhe o nome, por ser o local de aspecto agradável, às margens do rio de grande largura,  o Guaporé, águas mansas e bela e extensa praia.
O monarca de Portugal, desejando preservar a região contra possíveis invasões espanholas pelo Guaporé, onde os limites com as possessões do Reino da Espanha nesse extremo Oeste do país já estavam bem demarcadas, enviou para ali um fidalgo de alta linhagem e competente administrador que, em pouco tempo, conseguiu transformar aquele rico deserto em uma próspera cidade de quase dois mil habitantes. Tudo isso, infelizmente, apresentava, agora, um aspecto desolador. Esse pedaço do novo mundo, magnífico em riquezas naturais, com seu sistema hidrográfico dos mais volumosos, correndo o belo Guaporé junto às casas da cidade, alimentado por uma série de outros rios de vulto, como o Barbados, o Alegre, o Rio Verde e com seus campos formosos, ricos em capins para a criação de toda variedade de gado, com vastas planícies a perder de vista, como os campos de Casalvasco, onde o governo colonial manteve criação de cavalos das melhores raças existentes nos países europeus, importadas e ali aclimatadas. No começo deste século, ainda, por aquelas paragens, eram vistos, ao longe, remanescentes de rebanhos bravios, em loucas correrias, ante a aproximação de algum cavaleiro que por acaso ali passava. Esses campos, que medeiam entre Vila Bela e o local onde foi construída pela Comissão a ponte sobre o  Guaporé, viram as diligências, puxadas a quatro ou a oito cavalos, correrem pelas estradas, antigas e ricas carruagens marchetadas a ouro, transportando, em seu bojo, os potentados representantes dos reis de Portugal, as damas da Corte dos Capitães-Generais e toda a nobreza acompanhante, quando de suas viagens de São Luiz de Cáceres a Vila Bela, ou vice-versa. Hoje, passados 2 séculos desse ensaio de civilização naquele pedaço do Novo Mondo, enorme parte das riquezas naturais, que acima tentamos descrever, desapareceu quase por completo. Esses milhares de hectares de matas virgens, que hoje não mais existem, apenas foram aproveitados em sua ínfima parte, encontrando-se desfalcados pelo menos em oitenta por cento de sua preciosa riqueza natural, transformando-se em campos de capim. Onde se encontra todo esse incalculável valor representado por intermináveis florestas de madeiras preciosíssimas, de que tanto carece hoje o país, em todos os seus quadrantes? O sistema de preparação de lavouras, no século passado, primitivo, rudimentar, possivelmente ainda hoje empregado em alguns Estados, era simples e de bom rendimento. Consistia em derrubada de árvores, roçado e queima. O serviço de roçado era pequeno, porque, na mata virgem, permanentemente sem luz do sol pela copada das árvores, o chão é quase limpo de vegetação rasteira. A derrubada das árvores é quase todo o trabalho que, concluído, vem a queima e, em seguida, o terreno é plantado. A semente, jogada na terra, germina sem demora, desenvolvendo-se rapidamente e em alguns meses o lavrador poderá vir colher a produção esperada. O solo da recém- derrubada floresta tem a peculiaridade de não fazer brotar logo o mato, que iria obrigar o trabalhador à capina, vindo ele somente depois da colheita, para novo plantio. Mas o lavrador não plantará pela segunda vez no mesmo lugar, porque sabe que, se o fizer, terá trabalho de enxada por alguns dias. Prefere proceder a nova derrubada, para não ter muito que pegar na enxada, apologista e defensor que é da lei do menor esforço. O lavrador de hoje, instruído pela campanha empreendida em todo o Brasil para a defesa das árvores, inteirado do mal, do crime que seus antepassados ignaros cometiam, procura conhecer e adotar o sistema mecanizado e os métodos modernos utilizados em trabalhos de agricultura. Todavia, essa imensa floresta, inutilmente desbaratada, queimada, incendiada, para o egoístico proveito do lavrador, não o foi somente no Norte do País, mas também nos Estados do Sul, como, para citar um exemplo, no Paraná,  onde o autor destas linhas viveu alguns anos, tropas em viagem pelos sertões de Capela da Ribeira, Apiaí e na direção Sul, até próximo de Ponta Grossa, podiam passar uma semana cavalgando por sob a mata. De Curitiba para o Sul, começavam as grandes florestas, hoje totalmente desaparecidas, pelo sistema acima descrito. Lá, grande número de sitiantes plantavam anualmente de 50 a 100 alqueires de milho para engorda de grandes levas de porcos, que eram tangidos, no fim do ano, já gordos, durante mais de um mês pelas estradas, até alcançarem a feira permanente de Itapetininga. Também só plantavam uma única vez, no mesmo local.
Na região do Guaporé, entretanto, o desaparecimento das matas pela mão do homem não se deu por esse motivo. Nunca chegou a haver grande número de plantadores para extensas áreas de terra e isso por uma razão muito simples: a população do município, no seu maior estágio de desenvolvimento na era colonial, não ia além de 3 mil habitantes e, não havendo exportação, a produção agrícola tinha de ser limitada. O índio, por sua vez, com o seu sistema alimentar primitivo, não se dá a grandes plantações. As tribos povoadoras daqueles vastos sertões, todas nômades, passando a vida a caminhar, necessitam do chão limpo para se deslocarem e para verem a caça ao longe. Por esse motivo, o silvícola não encontra outro meio a não ser a queima das matas que, com a continuidade, se transformam nos campos, que se encontram constantemente. Esse processo possibilitou, em benefício desses habitantes das selvas, o desenvolvimento de alguns tipos de antílopes e também de frutas silvestres, de que há farta variedade nos campos.
A topografia do local, onde Dom Rolim de Moura Tavares estabeleceu a antiga Capital, é das mais belas. Emoldurando a linda paisagem, há uma cordilheira na direção Noroeste, dando um aspecto majestoso ao conjunto. Hoje, essa cordilheira tem o nome de Serra de Ricardo Franco, dado por Rondon, em homenagem ao ínclito engenheiro militar e destemido capitão, que defendeu Corumbá contra as forças invasoras do exército paraguaio, em 1865.